De criticado a esperança: os bastidores da metamorfose de Raphinha
Quando Raphael Dias Belloli entrou em campo pela primeira vez com a camisa do Barcelona na temporada 2024-25, após dois anos nada tranquilos, havia algo diferente.
A torcida, o treinador, os companheiros e até quem convive diariamente com o jogador perceberam: Raphinha, o ponta-direita veloz e brigador, havia se metamorfoseado. Agora, ele era um meia, que mantinha a velocidade e o espírito de luta de sempre; só que, jogando centralizado, passou a mostrar que era muito mais útil.
Após 11 partidas, são seis gols e cinco assistências. Os números, monstruosos, são apenas parte do processo. Em sua terceira temporada, o brasileiro conseguiu uma virada que poucas vezes foi vista na história do Barcelona: no clube catalão, a maioria nem sequer sobrevive a duas temporadas de críticas.
"A paciência com um jogador que custou 60 milhões é muito menor que com um garoto da base", resume um funcionário do clube.
Até agosto deste ano, Raphinha era visto como uma contratação cara, feita numa época de pouco dinheiro. Durante os meses de julho e agosto, o clube esperava que ele aceitasse uma proposta da Arábia Saudita. Era a chance de fazer caixa. Dois meses depois, a diretoria já agradece por ele ter ficado.
Nesta data Fifa, Raphinha terá a chance de levar essa boa fase também para a seleção brasileira. A tendência é que ele seja titular nos jogos contra Chile e Peru, pelas Eliminatórias da Copa do Mundo de 2026. Dorival Júnior tem cogitado a possibilidade de tirá-lo da ponta direita, deslocando-o para o meio e dando mais liberdade: a receita que tem dado certo no Barcelona.
O que aconteceu comigo?
Quem convive de perto com Raphinha afirma que o desempenho como meia surpreende o próprio jogador. Mudar de posição aos 27 anos é um desafio que nem todos os atletas topam encarar. Ainda mais raros são os casos de sucesso.
A metamorfose, nesse caso, foi involuntária. "A posição preferida dele é a ponta direita, depois vem a ponta esquerda; jogar no meio era uma terceira opção", afirma uma pessoa próxima ao jogador.
Com Xavi Hernández como técnico, Raphinha passou duas temporadas entre ser reserva e raramente chegar ao final dos jogos quando era titular — ele só atuou os 90 minutos nove vezes, em 87 partidas. Sob o comando do catalão, jogou nas duas pontas e até chegou a ter chances no meio, mas com função diferente da atual.
A chegada da Hansi Flick mudou o panorama. O alemão percebeu, de cara, que havia três pontos básicos. O primeiro: Lamine Yamal teria que ser titular; o segundo: Raphinha, também. Por fim, veio a proposta ao brasileiro. "Você se sente confortável atuando como meia?", perguntou o técnico.
"Eu quero jogar", respondeu Raphinha.
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Quero receberDesde então, em 11 jogos, o brasileiro foi titular dez vezes e sempre jogou os 90 minutos. Contra o Osasuna, foi poupado e entrou aos 14 minutos do segundo tempo: foi a única derrota do time em nove rodadas do Campeonato Espanhol, por 4 a 2.
"Quando Lamine Yamal apareceu, parecia que Raphinha seria prejudicado. Mas isso não aconteceu: ele, Yamal e Lewandowski se completam. Passamos duas temporadas dizendo que Raphinha atacava bem os espaços pela ponta, que chutava bem. Mas ele tem muito mais futebol do que isso", resume Juan Irigoyen, chefe de Esportes do El País em Barcelona.
Líder e capitão
Ter a chance de jogar sempre mudou o astral de Raphinha. No vestiário do Barcelona, o espírito competitivo do brasileiro contagiou os jovens do elenco. E, como há cada vez mais adolescentes ganhando chances, o fã clube cresceu.
A consequência foi vista na eleição dos capitães da equipe, realizada por votação dos atletas. Com a saída de Sergi Roberto, o posto estava vago: Ter Stegen foi o mais votado, seguido por Ronald Araújo e Frenkie de Jong. Raphinha, com muito apoio da juventude, terminou em quarto.
As lesões de Araújo e De Jong fizeram o brasileiro começar a temporada como segundo capitão. Na prática, ele atuava como o primeiro: as regras de LaLiga dizem que apenas o capitão pode falar com o árbitro; quando o dono da braçadeira for um goleiro, caso do Barcelona, é o segundo capitão que ganha esse direito.
A grave lesão de Ter Stegen, na goleada por 5 a 1 sobre o Villarreal, acabou dando a braçadeira a Raphinha.
O brasileiro deve cedê-la em breve, com os retornos de Araújo e De Jong; mas os meses em que teve a responsabilidade de liderar a equipe mudaram o seu status no vestiário e deram uma confiança que, segundo o seu próprio estafe, havia faltado em momentos das temporadas anteriores.
O efeito Flick
A chegada de Hansi Flick ao Barcelona mudou a rotina do clube e é apontada por todas as partes envolvidas como crucial para a virada de Raphinha. "Com Flick, o time treina muito mais", resume uma fonte do clube.
A imprensa não tem acesso aos treinos, mas — ainda que não dê para comparar a qualidade do trabalho de campo com a de Xavi e outros antecessores — a conta é fácil: a comissão técnica do alemão comanda duas atividades por dia e também faz uma ativação horas antes das partidas.
As duas coisas são raras no futebol espanhol, mas muito comuns na Alemanha. O treino em jornada dupla não foi uma decisão arbitrária: Flick perguntou aos jogadores, e eles aceitaram.
Raphinha é um dos mais empolgados com a nova rotina. "Ele queria treinar mais. Hoje, chega em casa absolutamente destruído após os treinos. Mas ele gosta", conta uma fonte próxima ao jogador.
"As informações que temos é que Raphinha treina muito bem com Flick. Ele conquistou o treinador e tornou-se um de seus jogadores favoritos. Com Flick, a realidade é diferente: ele ganhou confiança e tornou-se uma estrela", avalia Eduardo Burgos, repórter que cobre a seleção brasileira no diário AS.
Em busca de um Thomas Müller
Por trás da ideia de Hansi Flick sobre a mudança de posição de Raphinha há um conceito fundamental no estilo de jogo do treinador alemão: ter um meia com liberdade de atacar espaços e conectar-se com o centroavante.
Na temporada 2019-20, quando levou o Bayern de Munique ao título da Champions League, Flick usava uma fórmula parecida: Thomas Müller ocupava uma posição entre meia e atacante, sempre procurando espaços para encontrar o camisa 9 — que era Robert Lewandowski, o mesmo que agora ocupa a posição no Barcelona.
Naquela temporada, o polonês marcou 55 gols e conquistou o prêmio de Melhor do Mundo pela Fifa; Thomas Muller, por sua vez, anotou 14 gols e deu 25 assistências.
Na campanha rumo ao título, o Bayern de Flick destruiu o Barcelona em uma goleada por 8 a 2, considerada um dos grandes vexames da história do clube catalão. Foi ali que o técnico entrou na agenda da diretoria do clube.
No Barcelona desta temporada, como já tem seu Lewandowski, Flick precisava encontrar um Thomas Muller. Raphinha era uma opção, ao lado de Dani Olmo, principal contratação do clube na janela de transferências.
Os dois só jogaram juntos como titulares uma vez, na goleada por 7 a 0 sobre o Valladolid, ambos com liberdade para procurar espaços e criar jogadas. Raphinha marcou três gols; Olmo marcou um e acertou a trave três vezes.
O espanhol machucou-se logo depois em compromisso pela seleção, mas deve voltar ainda neste mês. Quando ele retornar, a tendência é que Flick repita o plano. Raphinha pode até aparecer na escalação como ponta-esquerda, mas na prática ele se movimenta para onde o jogo pedir.
E na seleção?
Diante do cenário favorável no Barcelona, Raphinha volta à seleção brasileira com um status diferente. Estrela de um dos maiores clubes do mundo e com os melhores números da carreira, ele se apresenta como uma esperança de que a equipe de Dorival Jr. possa finalmente encadear dois bons resultados e afastar de vez a ameaça de ficar fora de uma Copa do Mundo pela primeira vez na história.
Com a ausência de Vini Jr., cortado por causa de uma lesão cervical, o técnico tem a chance de replicar na seleção o esquema tático do Barcelona: com Rodrygo na esquerda e com liberdade, Raphinha também livre pelo meio, e apenas um ponta fixo, pela direita — Savinho é o favorito —, e um centroavante.
Desde a lesão de Neymar, prestes a completar um ano, a seleção ainda procura um jogador com esse perfil de atacante-armador. Lucas Paquetá foi testado na função, mas deve recuar em campo nos próximos jogos; Rodrygo seria a opção natural, mas a possibilidade de escalá-lo na ponta esquerda, sua posição preferida, deve pesar.
Raphinha voltará ao time pela primeira vez após a Copa América, depois de ficar fora dos duelos diante de Equador e Paraguai. Na ocasião, ele teria de cumprir suspensão contra os equatorianos, e Dorival não quis chamá-lo apenas para uma partida.
A comissão técnica entrou em contato com o camisa 11 do Barcelona para explicar a ausência na última lista e tem acompanhado de perto essa transformação do jogador.
Nos próximos dias, o novo ídolo do Barcelona terá pela frente outro desafio, que envolve mais uma metamorfose: passar de jogador que se destaca na Europa a líder em campo também na seleção brasileira.
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