Luciano, o ídolo dos novos tempos
POR LUCCA BOPP*
O são-paulino mais purista torce o nariz quando Luciano é colocado na prateleira de ídolos. Talvez porque o purismo esteja diretamente relacionado com a nostalgia e, por consequência, com os torcedores que viram um São Paulo diferente. Um clube de vanguarda, com vocação para conquistas e que metia medo em adversários brasileiros e europeus. Muito embora o clube tenha vivido lampejos da sua própria identidade em 2023, com um título maiúsculo da Copa do Brasil, derrubando, um por um, rivais históricos, são outros tempos.
Gestões macabras administrativamente e escolhas esportivas mais duvidosas que o sashimi vendido em posto de gasolina. Uma sucessão de erros, que culminaram com a ruptura de valores que fizeram - e fazem - do São Paulo um dos clubes mais poderosos do continente. Nesse período - e aqui quero estabelecer o recorte temporal de 2013 a 2023, dez anos que envelheceram tricolores como se fossem cinquenta - ídolos do passado vieram, cada um à sua maneira, para tentar resgatar o que havia se perdido pelo caminho. Paralelamente a isso, o maior deles parou de jogar - e mesmo ele voltou duas vezes para, na unha e em outra função, tentar recolocar este transatlântico na rota das conquistas. Foram vários nomes, de contextos e calibres diferentes: Cicinho, Luis Fabiano, Kaká, Lugano, Hernanes e Miranda.
Mas, como diria Littlefinger, o personagem mais escroto e inteligente de Game of Thrones, "o caos é uma escada." E no absoluto caos que assolou o São Paulo, entre Mirassóis e Penapolenses, impeachment e porrada entre dirigentes, a alcunha de ídolo ficou vaga - esperando que alguém subisse os degraus dessa escada que tem como destino um lugar bonito no coração dos são-paulinos. Alguns postulantes se apresentaram, mas talvez nenhum deles tenha reunido as características mandatórias para ocupar este título.
O jogador precisa ter uma coleção de virtudes e defeitos inexoráveis, ingredientes customizados para se tornar um ídolo. Ou melhor: um ídolo dos novos tempos. E Luciano tem. Luciano tem mais de 200 jogos pelo clube, Luciano tem mais de 70 gols pelo São Paulo, Luciano decide jogos grandes. Luciano provoca rivais, Luciano debocha de adversários, Luciano pentelha os árbitros. Luciano incomoda comentaristas, Luciano manda indiretas em entrevistas, Luciano toma cartões estúpidos. Luciano joga pra torcida, mas também joga pela torcida. Luciano dá xilique, Luciano dá voadora, Luciano dá carrinho. Luciano jogou no rival, provocou o rival, rodou o Brasil e escolheu o São Paulo para ser o lugar onde ficar. Luciano foi o 11 que a gente esperava, Luciano é o 10 merecido.
É um personagem complexa. Fascinante. Com falhas e limitações aparentes, mas que não se esconde nem se furta a mostrá-las. Luciano é craque? Não é. Luciano merecia um lugar na Seleção? Olha… perdão, deixei o clubismo falar por mim. Não merece, não. Mas diante desses atacantes inimigos do gol vestindo a amarelinha, seria bom ter alguém que não amarela nesta selva que é o futebol brasileiro. E o que falta de Brasil na Seleção Brasileira não tá escrita no gibi.
Falando em gibi… Luciano é um anti-herói, artigo raríssimo no futebol de hoje. É difícil gostar do Luciano, até mesmo para são-paulinos, da velha e nova geração. Conheço grandes são-paulinos que não o suportam e, nesse sentido, se igualam a palmeirenses e corintianos, que também o detestam - e isso já seria o bastante pra todo tricolor o ter como jogador favorito. Em um futebol tão pausterizado, tão media training, tão chapa branca, tão "vamo em busca dos três pontos", tão "o VAR vai checar as linhas", tão dancinha no Tik Tok, uma dose de personalidade precisa ser celebrada.
Sobretudo em um clube apático como foi o São Paulo na última década, que tratou um quinto lugar do Brasileiro e as quartas-de-final da Copa do Brasil como missão cumprida. Luciano é uma lembrança permanente dentro de campo de que o inconformismo é a gasolina de qualquer time que se dispõe a ser vencedor. E nesse título histórico, participou ou fez gols contra Sport, Palmeiras e Corinthians. Na final, aceitou ser reserva e, quando entrou, ajudou o time na defesa da taça inédita.
Há outros ídolos no São Paulo, mas nenhum deles, na minha visão, tem o pacote completo.
Lucas viveu pouquíssimo as vacas magras - e ídolo que jogou na boa e na ruim tem pele mais grossa. Calleri é menos provocativo e controverso, componente fundamental. Arboleda é muito mais simpático do que foi zagueiro na história.
Apenas a bola jogada não credenciaria Luciano a ídolo, talvez.
Nem a quantidade de conquistas.
Nem a carreira construída.
Mas essas são métricas do passado. Hoje, precisamos de pessoas que a gente aprenda a gostar; forjar relações que sejam frutos do cultivo. Porque está tudo muito efêmero, aquele papo de amores líquidos, tudo vira obsoleto em questões de segundo. O futebol, não. O futebol fica. E, como objeto popular imprescindível, tem o papel de nos educar.
Eleger - e aceitar - Luciano como ídolo é o são-paulino dizendo para o mundo que não buscamos jogadores perfeitos, pessoas infalíveis ou exemplos de almanaque. E, na fila, o São Paulo deixou de ser o melhor time do Brasil para ter a melhor torcida do Brasil. Porque entendeu que, na relação com o clube, o valor da lealdade é maior que o valor do quadro na parede.
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Quero receberEntão, se alguém pode abraçar valores diferentes para eleger um ídolo improvável e construído como Luciano, é o são paulino. Temos lugar de fala. O Morumbi, onde virou lugar de grito: "É Luciano!"
Se ele ficar - e a diretoria tem obrigação de renovar até ele encerrar a carreira aqui - o tempo verbal se altera definitivamente: será Luciano.
O ídolo dos novos tempos.
*Lucca Bopp é escritor, comentarista e diretor de criação
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