Tira o terno, Flamengo!
POR MARCELO DUNLOP*
Para avaliar a evolução do Flamengo em 12 partidas sob Adenor Tite temos de voltar um pouquinho no tempo. Epa, um asteroide! Bum. Lamentamos informar, mas os dinossauros se transformaram em brinquedos.
Voltamos muito. O que nos interessa se deu há uns 3.500 anos, pelo visto na China. Foi, ali, que começou a nascer a expressão "jogar de terno" tão cara à cultura flamenga.
Até então, não havia terno, não havia calça, e cada quicada no cavalo doía demais… Não à toa, o seríssimo historiador francês Hippolyte Taine decretou: "O aparecimento das calças foi uma das maiores transformações da humanidade".
Era, afinal, a época das togas, vestidos e túnicas, quando o povo saía do banho, se enrolava na toalha e saía para a rua daquele jeito mesmo. Os invernos, rígidos, eram combatidos com peles e mantas, mas faltava alguma coisa. Foi quando algum gênio, na certa uma mãe agoniada, criou uma peça para cobrir dos pés às virilhas. Eram como dois meiões feitos de lã. Outra dona, mais genial, costurou ambas e estavam lançadas as calças, sucesso total entre nômades, pastores e cavaleiros da Antiguidade.
Mas toda grande invenção tem um efeito colateral terrível, e não estamos falando nas calças de ginástica a chocar o povo por aí. O célebre Taine estava certo: só a partir daquela invenção, a humanidade deslanchou. Parou de se lanhar e balangar as partes e se dedicou às grandes criações humanas, como a bola de couro, o Flamengo, o bife à milanesa e o radinho de pilha. O problema viria anos depois.
Tudo começou com a chegada do europeu e colonizador de corações Jorge Jesus, convocado às pressas para comandar um elenco raro e de fina estampa. Depois dos anos 1950 e dos anos 1980, a torcida voltava a salivar com a reunião de um grupo invejável de jogadores estilistas, capazes de atuarem de cabeça em pé e ombros alinhados.
Era o caso de Everton Ribeiro, Diego, Juan e Rodrigo Caio, e logo depois Gerson Wakanda, Pablo Marí e Filipe Luís. Sob o comando sagaz do estrategista português, o elenco costurava jogadas com postura elegante, e logo a torcida emplacou o mantra: "Esse Flamengo joga de terno!"
Nada contra a expressão, o problema seria a cobrança depois. Quando o alfaiate JJ picou a mula e foi atrás de outros panos, o Flamengo não conseguiu mais combinar expectativas com resultados.
Veio o Flamengo à moda Torrent, de colarinho duro. O Flamengo de Ceni, desconjuntado, apertado ali e frouxo acolá, que parecia destoar do rubro-negro. O Flamengo de Renato, de camisa desabotoada e suja de batom. E os trabalhos gringos de Paulo Sousa, Vitor Pereira e Jorge Sampaoli, que mostraram que o Flamengo estava nu. Se o elenco tinha os mesmos Everton Ribeiro, Filipe Luís, Gerson, como podia jogar esbaforido, esfarrapado, sem a menor elegância? O próprio Dorival, simples, elegante e sincero, rodou por variados motivos, entre os quais o de aparentar menos classe que seu elenco.
Tite, ao chegar com seus trajes bem cortados e engomados, logo se viu obrigado a renovar o guarda-roupa. Perdeu a elegância em pessoa de um Everton Ribeiro (snif), de Filipe Luís (chuinf) e agora de Gerson, com um lance no rim. Mas logo percebeu que era hora de desafrouxar a gravata, esquecer a obrigação de jogar de smoking e convencer cada craque flamengo a dar a vida para combater e vencer seu marcador, seu rival direto em campo. Com a vitória particular de cada um no gramado, os 11 vibram, e 40 milhões vão junto.
Estamos indo para a 13ªpartida, muito cedo para cravar que teremos um Flamengo casual, descamisado e brigador, com uns golzinhos de letra e calcanhar aqui e ali. Mas dá para palpitar que, se o Flamengo de Tite vestir paletó, será o do quimono. E que este elenco refinado, ou o que sobrou dele desde 2019, quer voltar a honrar as calças que veste.
* Marcelo Dunlop é cronista. Seus livros mais recentes são "O homem que morava no Maracanã" e "O mau humor de chuteiras".
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