Juca Kfouri

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Opinião

Um sonho de Antero Greco

POR ANTERO GRECO*

Sabe aqueles sonhos tão intensos e cheios de detalhes que até parecem verdade?

Daqueles que a gente acorda suado e com o coração disparado?

Que nos fazem ficar com vontade de dormir de novo para ver se tem a continuação?

Pois é, tive um desses durante a semana e queria compartilhá-lo com vocês.

Sou notívago, por vocação e por ritmo de trabalho.

Saio sempre tarde, ou do 'Estadão' ou da ESPN/Brasil.

Em geral, chego em casa com a adrenalina lá em cima e levo um tempão até baixar a bola.

Como qualquer ser humano minimamente normal.

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Tenho também uma fome crônica e traço o que tiver na geladeira.

Pareço a Magali. Só consigo dormir se forrar o estômago.

Como não sou mais criança, abri mão dos sanduíches de mortadela ou pratos de macarrão na madrugada e voltei a fazer refeições de … criança.

Agora, só tomo leite com sucrilhos (sei, o correto é dizer flocos de milho) com uma fruta.

Na quinta-feira, escolhi colocar banana prata picada. Estava muito bom.

Estômago acalmado, fui pra cama e peguei no sono logo.

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De repente, me vi sentado numa tribuna de imprensa, com a minha Hermes Baby cor de laranja, um bloquinho de notas e uma canetinha bic .

(Epa, antes de prosseguir, um esclarecimento: você sabe o que é uma Hermes Baby? Não é lap top de última geração, mas máquina de escrever portátil. Macia e barulhenta. Ainda se encontram algumas em lojas de antiguidades.)

Não conseguia distinguir com clareza qual era o estádio. Em alguns momentos, tinha a impressão de que era o Azteca, no México.

Em outros, me via no Sarriá, em Barcelona. Aquilo começava a me incomodar. Onde eu estava, afinal?

Enquanto tentava me achar, dois times com a camisa da seleção brasileira entravam em campo.

'Não é possível', pensei. 'É Brasil contra Brasil?', me perguntava.

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Arregalei os olhos quando vi Carlos Alberto puxando uma fila e o doutor Sócrates encabeçando outra.

E atrás deles apareciam Brito, Piazza, Clodoaldo, Gerson, Tostão, Pelé, Oscar, Luizinho, Cerezo, Falcão, Serginho.

Meu coração disparou. "Será que eles vão se enfrentar?", me questionava. "A turma do tri de 70 contra o time do Telê?"

Mal deu tempo de esfregar os olhos e lá estavam Carlos Alberto e Sócrates trocando flâmulas (uma da CBD e outra da CBF) e vendo a moedinha subir.

Na beira do gramado, Zagallo com suas costeletas esbranquiçadas abraçava Telê Santana, com suas suíças grisalhas e já mascando palitinho para disfarçar a tensão.

Os dois se conheciam de longa data: Zagallo era ponta-esquerda do Botafogo, Telê, ponta-direita do Fluminense, em duelos que travaram nos anos 60.

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O juiz não consegui ver bem: ora parecia o alemão oriental Glockner, da final de 70; ora, tinha quase a certeza de que era o israelense Klein, do fatídico 5 de julho de 82.

De qualquer forma, os dois estavam ligados à Itália.

Aliás, a Azzurra marcou a trajetória dessas duas equipes.

Uma faturou a Jules Rimet pra sempre em cima do time dos meus ascendentes, com 4 a 1.

Outra foi embora pra casa mais cedo, porque perdeu por 3 a 2.

Enquanto eu pensava nisso, a bola já rolava.

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Mansamente, de pé em pé, sem pressa, com cadência, acariciada.

Não era maltratada, nem quando Brito e Serginho se chocavam; ela sofria, no máximo, uma escoriação de nada.

Clodoaldo, Gerson, Rivellino, Tostão, Pelé pareciam um quinteto de cordas, num concerto de câmera.

Cerezo, Falcão, Sócrates e Zico estavam numa roda de samba formada por bambas.

Toca daqui, toca dali, Júnior aparece livre pela esquerda, toca para Éder, que cruza para a área. Serginho fura, mas o doutor Sócrates apara no peito, engana Piazza e toca rasteiro, sem chance para Félix.

Aplausos no estádio (Azteca? Sarriá?).

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A seleção de 82 faz 1 a 0, com 10 minutos só de jogo.

Carlos Alberto chama Brito e Everaldo, diz alguma coisa no ouvido deles, leva a bola pro meio de campo.

Logo na saída, Tostão toca pra Gerson, que lança Jairzinho. O Furacão desembesta, deixa Luizinho perdido e chuta; a bola bate na trave e Valdir Perez sorri, um riso nervoso, aliviado.

'O tempo passa', narrava Fiori Gigliotti, e não é que a surpresa aumenta?

25 minutos: Leandro vê um corredor pelo lado direito, arranca pro ataque, recebe passe de Zico, vê Falcão na entrada da área e diz: 'É sua!".

O Rei de Roma enche o pé. Era sonho mesmo: Brasil de 82 faz 2 a 0 no Brasil de 70.

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O estádio se divide em aplausos e incredulidade.

O tira-teima ia ficar nisso?

Nem por sonho!

O segundo tempo começa com Pelé disposto a acabar com a brincadeira daqueles garotos.

O Rei dá uma entortada em Cerezo, abre pra Rivellino na esquerda e corre pra área. Oscar e Luizinho tentam adivinhar pra onde Pelé vai. Só se dão conta de que a dúvida era inútil, quando vêem o Negão subir no segundo andar e cabecear. Gol! Valdir Perez nem piscou.

Telê se agita no banco, percebe que aquele gol pode mexer com seu time.

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E o pressentimento do Mestre tinha fundamento.

O Brasil de 70 cresce, Gerson passa a dominar o meio-campo, Pelé encontra seu espaço, Tostão desmonta a defesa de 82.

Resultado: aos 15 minutos, Jairzinho pega rebote de Valdir e empata.

"Agora a cobra vai fumar", pensei. E fumou.

Era cá e lá, os dois times com seu arsenal de jogadas vistosas, de dribles astutos, de lances de gol.

O time de 70, mais experiente, controlou melhor os nervos e virou.Pois é, virou, aos 38, com Tostão, num passe milimétrico de Gerson, de antes do meio de campo.

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"Acabou", batuquei na minha Hermes Baby.

Eram 43 do segundo tempo e o Brasil de 82 tinha um escanteio.

Éder bate do lado direito, com efeito; Oscar aparece do nada, cabeceia forte, Felix se esparrama, faz a defesa, mas o bandeirinha viu que a bola entrou. Por milímetros, mas entrou! 3 a 3!!!

"Que jogaço!", eu vibrava, chutava o ar.

"Ei, o que você tá fazendo, Antero?! Tá tendo pesadelo?!"

"Ah, o quê?! Espera que ainda tem dois minutos de jogo."

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"Esperar o quê, italiano?!. Tá maluco?"

"Maluco nada. O Oscar empatou, mas ainda tem jogo."

"Pára com isso e vê se fica quieto."

Era a Leila, que me chacoalhava, porque me ouviu urrar.

"Tive um sonho", eu disse pra ela. "Preciso ver como acaba."

Tentei de tudo, mas não dormi mais. Não sei como terminou aquele clássico.

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De qualquer forma, tomei uma decisão: não tomo mais leite com flocos e banana antes de dormir.

Vai que eu tenha pesadelos com Cruyff, Caniggia, Paolo Rossi, Zidane.Não quero isso de novo,

*Antero Greco foi um dos maiores e seria mesmo um sonho se todos os jornalistas fossem como ele.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL

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