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Opinião

Gol do Oscar

POR LUIZ GUILHERME PIVA

A tentação de analisar filosoficamente a vitória da Alemanha sobre o Brasil por 7 X 1 na Copa do Mundo de 2014 com o filtro do seu décimo aniversário é uma espécie de compulsão de todos nós, torcedores, sempre propensos à reflexão profunda.

Se, contudo, seguirmos o axioma de Sócrates, teórico do autoconhecimento e da democracia corintiana, chegaremos a uma única conclusão: "Só sei que nada sei".

A propósito, não sabemos nem mesmo se a frase é de Sócrates, porque há quem diga que ela tem outro autor: Dante.

Não o Alighieri, cuja seleção não passou da fase de grupos naquela Copa, mas o zagueiro brasileiro no 7 X 1, que a exprimiu quando pediu a palavra no vestiário durante o intervalo para perguntar onde estava.

Depois de informado, ele se lembrou de que, quando entrou em campo (pela primeira vez na Copa, segundo ele, ou na vida, segundo muitos outros), o técnico Felipão lhe deu um bilhete com a frase "Abandonai toda a esperança, vós que entrais" e disse que era de uma filósofa chamada Dona Lúcia.

Também aqui há controvérsias.

Dante foi encontrado zanzando em círculos nas ruas depois do jogo segurando o bilhete, e os jornais publicaram a frase como sendo criação dele.

Mas muitos afirmam que ela é, na verdade, de Caetano Veloso, que a prescreveria a colegas quando entram no palco, mas ele, mesmo admitindo que poderia tê-la dito ("Por que não?", "Por que não?", cogita), nega sua autoria (ele fala "Merda!" nesses momentos), por acreditar que "só é possível filosofar em alemão".

Contudo, esta formulação sobre o poder da linguagem, ao que consta, é de Martin Heiddeger, um dos atacantes do selecionado germânico naquele 8 de julho de 2014, querendo expressar que futebol e filosofia são a mesma coisa (não por acaso, ele é o símbolo dessa data no seu país, feriado nacional em que ocorre uma espécie de carnaval conhecido como Dia da Schadenfreude- sem tradução em português, apesar de o traje dos desfiles ser a camisa da seleção brasileira).

Pelo menos é o que afirma Lineker, pensador inglês que, ao especular sobre a essência e o vir-a-ser do futebol, concluiu que "o futebol são onze contra onze e no final ganha a Alemanha" - e por isso concorda com Heiddeger quanto aos alemães terem não só o idioma propício à filosofia como também o perfil mais adequado à prática do esporte (vejam a ironia) bretão.

Mas toda essa compulsão filosófica pela análise dos 7 X1 depois de dez anos é muito imediatista. Tipicamente ocidental.

Os chineses adotam o longuíssimo prazo como abordagem analítica do futebol. E há que respeitá-los, porque, para muitos historiadores, o futebol surgiu justamente na China, 2.500 anos antes de Cristo, com os torneios festivos dos soldados, que, depois das batalhas, divertiam-se chutando os crânios dos adversários decapitados.

Um exemplo dessa perspectiva de longo prazo é a avaliação consagrada na China (de autoria também polêmica), elaborada nos anos setenta do século XX, de que era muito cedo para avaliar a quase bicentenária Revolução Francesa, que deu início, com o advento da guilhotina, à produção em série de bolas para a prática massiva daquele futebol-raiz.

Bill Shankly, filósofo escocês, desenvolveu, com base na experiência chinesa, a teoria de que "o futebol é muito mais importante do que uma mera questão de vida ou morte" - e situa nesse ponto sua divergência insanável com Hamlet, que, numa disputa entre a Dinamarca e a Inglaterra, paralisou a partida para refletir sobre o ser-não-ser do futebol segurando a bola do jogo.

Ele desqualifica frontalmente as dúvidas do conturbado jogador dinamarquês, cujas indagações marcaram a ruptura com a prática original e o início da modernidade futebolística - epistemologicamente denominada de fase nutella.

Mas os chineses fundadores tiveram muitos adeptos por séculos afora no mundo todo. Os principais foram os Maias, cujo técnico, Eça de Queiroz, apesar do estilo clássico, manteve a tradição asiática, distante da modernidade hamletiana que dominou o Ocidente: o capitão dos perdedores era punido com a morte.

Talvez essa tradição, em labaredas no inconsciente do técnico, explique o bilhete entregue a Dante por Felipão.

Que, aliás, errou feio: o capitão naquele jogo era o David Luiz.
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Luiz Guilherme Piva publicou "Eram todos camisa dez" e "A vida pela bola" - ambos pela Editora Iluminuras

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL

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