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Opinião

O sol de Paris e o bigode do Renê

POR LEANDRO IAMIM

A gente conheceu o Renê Simões naquela saga da Jamaica, no final da década de 90. A Copa do Mundo aumentou o número de vagas e de repente o país caribenho, geralmente destacado em anos olímpicos, mas pouco identificado com o futebol, estava na festa máxima do esporte bretão com um técnico de visual peculiar, óculos grosso e um bigode espetacular. Teve a chance de falar com o público e se mostrou bom de prosa, um cara filosófico e tal. Tive a chance de falar com ele uns anos atrás e classifiquei aquela fase como "marcada por trabalhos mais bonitos do que vencedores". Ele concordou.

Eu me referia mais ao que veio depois do que especificamente à Jamaica no Mundial de 1998. Aquele baixinho que parecia usar um disfarce, não um bigode, aceitou, depois de encerrada a saga jamaicana, trabalhar na Seleção Brasileira. No time feminino, no caso. Aquele jeitão sensível e humanizado de falar sobre o futebol jamaicano deve ter aberto portas. Quando o Brasil martelou os Estados Unidos na final olímpica de Atenas, em 2004, e assistiu perplexo a trajetória da bola encobrindo Ju Cabral e nos tirando a merecida medalha de ouro, a câmera da TV filmou uma lágrima grossa saindo debaixo dos óculos e repousando no vasto bigode de Renê.

Quatro anos mais tarde, de novo no cenário olímpico, de novo contra os Estados Unidos, nos foi negada mais uma vez a medalha de ouro. O Brasil tinha o esboço do que viria a ser pouco depois, na minha opinião, a mais forte escalação de nossa história - tanto esta final olímpica quanto a seleção fortíssima de anos depois foram derrotadas pelas mesmas adversárias. Na final de 2008 a camisa 10 chamava-se Marta, tão jovem e já em plena construção dos primeiros pavimentos do castelo onde mora a sua personagem dos sonhos, a Rainha do Futebol. Pois bem: já se passaram 16 anos.

O futebol olímpico é um corpo longe do espírito - do espírito olímpico, sobretudo. Joga em outras sedes, não cruza com halterofilistas de Andorra, não pega fila no McDonalds da Vila Olímpica, a cama não é de papelão, a foto nos aros oficiais dos Jogos está longe. O Brasl, em Paris-2024, eliminou França e Espanha em Nantes e Marselha, por exemplo. Agora o elenco está na cidade olímpica, mas a cidade já não é o que era dez dias atrás. A Vila Olímpica, nessa sexta, tem mais camas vazias do que ocupadas. Acabaram as filas na praça de alimentação, as ginastas da Bulgária já partiram, o sentimento é de leve melancolia. O Brasil chega quando a Olimpíada se prepara para acabar e, ao chegar, deve dizer: "espere mais um dia". Só mais um dia.

Chegamos com mala, cuia, pares de muletas, botas ortopédicas, um pouco de raiva da arbitragem e duas décadas de desaforo assimilado. Defendemos dois pênaltis, suportamos acréscimos de 19 minutos, vimos Marta lutar kung fu e chorar, suspensa, da tribuna de honra. Foi uma imagem que nos antecipou o futuro. De um lugar mais alto, num assento nobre, as jogadoras se acostumarão a ver, ou a presumir que viram, a Marta sem chuteiras assistindo emocionada o futebol que acaba para todas, até para as melhores. Na semiótica do esporte, a troca de sinais de coração entre atletas em campo e Marta na arquibancada já serviria para Paris 2024 ter valido a pena e ensinado algo sobre o futuro.

Mas aí veio o massacre sobre a Espanha, e a gente tem algo a mais para pensar. O futuro que espere um pouco para mostrar a sua autoridade: é hora da Marta descer para o gramado, vestir a chuteira e jogar uma vez mais, em nome do passado, em nome do bigode úmido do Renê, do batom borrado de 2019, do gol americano no último minuto dos acréscimos da prorrogação. Só mais um jogo. O destino olímpico já nos negou essa vitória o suficiente, usando quase sempre a mesma desculpa, vestida de branco, vermelho e azul. Já doeu o suficiente.

Só mais um jogo. Paris 2024 estará em seu penúltimo dia. Zíperes de malas ouvidos no quarto ao lado. No aeroporto, casacos coloridos de distintas delegações batem o último retrato. Paris, segunda-feira, volta à vida sem a encenação esportiva da melhor vida possível. O futebol feminino do Brasil, aquela das histórias que são mais bonitas do que vitoriosas, quer brincar de outra coisa, inverter estes sinais. Foi bonito, do bigode do Renê ao sorriso da Pia, foi bonito. Mais bonito de lembrar do que de viver, mas foi. O sol está às costas de nossa camisa 10, testemunha de cada parte dessa trama e autora da frase na qual ensina a chorar antes para rir depois. O sol é um pouco mais dourado quando nasce e quando se põe. A medalha fica um pouco mais dourada quando a gente sonha com ela por tanto tempo.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL

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