O que falta para a seleção é narrativa
POR LUCCA BOPP*
Evidente que falta um camisa 10, um camisa 5 e tanto um camisa 2 quanto um camisa 6 incontestáveis. Falta identificação, faltam ingressos mais baratos, falta personalidade. Falta muita coisa na Seleção Brasileira. Todas essas coisas. Mas, ao refletir diante da TV do não-futebol praticado contra o Chile, seleção que sofreria para subir na Série A2 do Paulista, me dei conta que o que mais falta para a Seleção Brasileira voltar a importar é uma narrativa.
Dorival poderia ser a narrativa, mas, lamentavelmente, optou pela mesmice. Poderia ser o treinador que 2 anos antes estava no Ceará e que andarilhou por diversos times, se livrou de rebaixamentos e que poderia declarar aos quatros cantos do país que apenas jogadores que atuam no Brasil seriam convocados porque sim. A coletiva de apresentação resvalou nesse fio de esperança, mas em seguida tratou de convocar 23 jogadores que têm a mesma conexão com o povo brasileiro que o Elon Musk tem com a fome mundial.
Salvo algumas exceções, jogadores anônimos. Atletas que atuam em times de segunda ou terceira linha da Europa e, segundo consta por jornalistas que acompanham os campeonatos europeus, têm ótimos números contra Osasunas, Wolverhamptons e Nices. Isso não é a Seleção Brasileira. Nunca foi. E nem falo pela coadjuvância, mas pela falta de apelo. De querer se importar. Quando trabalhadores e trabalhadoras encostam o peito no balcão da padaria e espiam a TV passando mesas redondas, nada é menos importante do que o número de assistências pela Premier League ou a mudança do 4-1-4-1 pro 3-5-2 do time de um país que eles talvez nunca pensem em visitar.
Brasileiro gosta de história. Brasileiro explica o caminho que fez para chegar em tal endereço. "Tentei ir pela Rebouças, mas tava parada, então caí ali na Henrique Schaumann e vim por dentro." Brasileiro dá satisfação para estranhos. Brasileiro sua desilusão amorosa para o motorista de aplicativo. Porque nossa eloquência prosaica é um traço cultural tão profundo quanto as belezas das nossas praias. Brasileiro puxa assunto para ocupar o silêncio. E poucos assuntos são tão puxáveis como a Seleção Brasileira de futebol. Mas a Seleção Brasileira, ouça só, virou o Silêncio Brasileiro. Vai falar do que? Do belíssimo jogo com os pés do Ederson? Do box to box do Burocrático, digo, Bruno Guimarães? Da falta de protagonismo de Rodrygo, o mais talentoso da Seleção da ausência de Neymar?
Não vai.
Até porque a Seleção não é, nunca foi e não pode ser tratada como um time qualquer. Estou a quilômetros de ser patriota, mas essa camisa amarela não é um uniforme, muito menos um fardamento. Essa camisa é um passaporte. Não porque somos reconhecidos em qualquer lugar do planeta como os inventores das coisas mais lindas dessa bagaça, mas porque vimos meninos vestindo essa camisa e se tornarem reis. Bruxos. Fenômenos. Baixinhos dobrando gigantes na marra. E todas essas cinco estrelas, a menor e maior constelação do mundo, foram escritas com narrativas.
Para ficar apenas nas conquistas que vi e senti, Romário teve que sair do Eindhoven com uma missão e dar um drible da vaca que deu errado pra vaca não ir pro brejo. Livrou a cara do Parreira, respirou fundo quando a bola beliscou a trave no pênalti e o resto é o Dunga enumerando palavrões para o mundo inteiro ouvir.
Ronaldo foi desenganado como jogador, o médico disse que ele talvez não andaria mais. Isso depois de ter uma convulsão no dia da final da Copa, em que jogou uma barbaridade - sua atuação contra a Holanda na semifinal está na prateleira dos recitais em algum galpão empoeirado que guarda o futebol em seu melhor momento. O mundo viu sua rótula ir parar na coxa depois que voltou de lesão. O mundo não acreditava que ele seria capaz de ser quem foi. Um topete bizarro pra enganar o planeta e o goleiro turco. O rebote de um goleiro cuzão e os braços abertos de quem corre pro abraço.
Narrativas. Epopeias. Fábulas. Histórias que só existiram porque havia essa camisa amarela em jogo.
Nos últimos dois anos, esse passaporte perdeu dois de seus carimbos. Duas assinaturas que os construíram. Pelé se foi, para embaralhar tudo que a gente sabe e não sabe sobre futebol. Sem Pelé, desconfia-se. O mar molha? O vento sopra? A bola é redonda? Quando os referenciais desaparecem, tudo fica confuso. E perdemos outro, um ano depois: Zagallo partiu e o maior apaixonado por essa camisa deixou de vociferar para as câmeras o seu amor. E, quando alguém deixa de nos amar, o abalo só passa batido para os distraídos. Falei de dois carimbos, mas existe um terceiro. Galvão Bueno não nos deixou, ainda bem, mas não tê-lo como interlocutor de nossa esperança e da nossa corneta é um desfalque sem reposição. Galvão encarnava o camarada que encosta no balcão e suas hipérboles nos conduziam nessas narrativas oníricas que é um jogo da Seleção.
Existe, é claro, uma possibilidade de narrativa. Quicando na entrada da área, pronto para alguém chutar. O nome dessa narrativa é Neymar. Não poderia admirar menos as escolhas que Neymar fez na carreira e escolhas que transcendem o campo, mas, com a bola no pé, pouquíssimos me encantaram tanto quanto ele. São 20 meses para a próxima Copa do Mundo e há uma decisão a ser tomada: pegar a história pela mão, chamar a responsabilidade sem caretas ou firulas ou penteados, e escrever nesta página em branco. Com canetas e letras. Não há nenhum jogador parecido com ele que tenha nascido nesse país lindo e feliz e triste.
Hoje, dia 15 de outubro de 2024, não tenho esperanças que ele vá olhar essa oportunidade com a profundidade compatível. Mas deixo o meu diagnóstico. Há uma narrativa a ser escrita. Um conto, uma crônica, uma poesia, um romance. É a narrativa que nos colocou no lugar onde há 22 anos não chegamos perto de estar. Pode ser Neymar amadurecendo tardiamente e garantindo o amor de uma nação até o fim dos tempos; pode ser Galvão retornando com algumas pastilhas a mais no bolso; pode ser Dorival escalando esses heróis combalidos que atuam no Campeonato Brasileiro. Ou pode ser outra coisa.
Essa história eu quero contar. Quero escrever sobre.
Mas, antes, essa narrativa precisa existir.
Quem se habilita?
*Lucca Bopp é escritor e redator publicitário.
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