Intensamente, suavemente
POR THEO OLIVETTO
Intensamente, suavemente
Meu pai era avassalador. Paradoxal. De uma intensidade suave e um poder de afeto visceral.
Eu apelidei esse jeito dele, quando eu tinha uns dez anos de idade, de "calmamente estressado". Minha mãe, Patrícia, ex-produtora de audiovisual, era a "estressadamente calma". Quem trabalhou com ela confirma. Eu, filho dessa mãe, confirmo também...
Acho que a manifestação física de Washington Olivetto, alcunha que ele orgulhosamente carregava 24 horas por dia, nunca foi capaz de realmente sintonizar com a sua mente.
Talvez por isso que ele gostava tanto de caminhar -- tinha que andar, marchar, se movimentar de qualquer forma que pudesse para metabolizar toda essa energia humana que transbordava dentro dele. Intensamente, suavemente.
Por outro lado, ele jamais gostou de correr. Afinal, se estivesse focado muito nisso, seria intenso demais. E perderia as coisas suaves ao seu redor que ele sempre curtia admirar.
O que ele mais gostava era quando notava-se algo que muitos viam, mas só ele mesmo realmente enxergava.
Não sou um especialista em publicidade, mas sua atenção detalhista (mas nunca autoritária) criou um profissional que, na sua área, era obcecado pela espontaneidade, porque achava que haviam coisas lindas demais no mundo para que o processo criativo fosse algo além de simplesmente consumir, transformar e replicar cultura.
Especialmente a brasileira.
Ele não poderia ser escultor. Não faria sentido bater uma marreta numa pedra até achar sua forma ideal. Para ele, a coisa era sempre construir, construir, construir.
A criatividade também não saia na base da marreta. Ele nunca acreditou que agências de publicidade tivessem de ser raladores de pessoas e de ideias de 30 segundos, como muitas eram na época dele e ainda são hoje. Os comerciais também passavam de 30 segundos muitas vezes. E era importante eles ficarem na cabeça das pessoas por muito mais tempo que isso também.
Meu pai, brasileiro orgulhoso, era conhecido por conseguir transitar do chic ao popular, e vice-versa, mesmo que, nos últimos tempos, alguns possam dizer que os seus elogios ficaram cada vez mais restritos ao seu país, que, a cada dia, se tornava mais diferente do país dos outros.
Ele estava muito frustrado com os rumos do Brasil (especialmente no quadriênio 2019-2022), mas, mesmo assim, nunca o vi manchando nossa imagem para os gringos. Ele era um anti vira-lata, que queria mostrar nossa cultura para o mundo não por qualquer carência ou insegurança, mas pela certeza que temos o potencial de sempre sermos os melhores.
Paradoxal. Como eu disse antes, ele tinha contradições. Seu jeito intenso e leve, por exemplo, tinha uma exceção importante. Era um corinthiano intenso, apenas intenso. Uma intensidade que, com as dificuldades que o nosso clube tem passado nos últimos anos, o machucava muito.
Sempre achou que o Corinthians representa as características mais nobres do povo brasileiro, elevando o significado da nobreza na nossa cultura e história, tão marcada por clérigos, castas e divisões— conceitos absolutamente anti-corinthianos.
Era contra qualquer rei. A não ser que o rei fosse ele mesmo, claro.
Lembrando que corinthiano se escreve com TH. Que nem Democracia Corinthiana.
Por mais que ele odiasse maniqueísmos, que ele enxergava como um dos elementos mais danosos da nossa coletividade cultural, isso não se aplicava a si próprio. Ele era o melhor, o maior, uma figura cósmica mesmo antes do dia 13, quando isso finalmente se materializou. Sempre soube do seu tamanho, ainda bem. Nas palavras dele, era humilde sem ser modesto. Ninguém pode acusá-lo de demagogia. Ele achava que essa sua sinceridade era uma forma de respeito com o público. Da mesma forma, sempre achou que seus comerciais tinham que ser delicados e atenciosos, mas irresistivelmente persuasivos, provocativos e charmosos.
Iguais a ele.
Fico constrangido falando sobre ele como meu pai. E também não sei se estou preparado para pensar sobre meu pai desse jeito sem sentir muita, mas muita dor. Ele me mimou a vida toda. Nunca baixou minha bola, e tentava me fazer acreditar todos dias que eu merecia todos os elogios que ele me dava. Uma das suas coisas favoritas era falar de pessoas que ele amava para outras pessoas que ele amava, trocando afetos intensamente sem suavizar, e trazendo todos cada vez mais perto de sua constante autoconfiança, na esperança de tentar contagiá-los com a mesma.
Newsletter
OLHAR APURADO
Uma curadoria diária com as opiniões dos colunistas do UOL sobre os principais assuntos do noticiário.
Quero receberEle dava os melhores conselhos, mesmo sendo simplesmente incapaz de guardar um único segredo. Sempre que contava para ele sobre alguma garota na escola, seus amigos (muitas vezes, muitos deles) sabiam em questão de horas, com uma impressionante abundância de informações e detalhes.
Ele adorava contar piadas e fazer as pessoas rirem. As piadas eram muito boas, e ele fazia questão de repeti-las seguidamente, diversas vezes, quase compulsivamente. As piadas dele eram as únicas que ficavam ainda mais engraçadas na quinta ou sexta vez que eram contadas. Sempre da mesma maneira, com o mesmo cuidado na prosa e no tom -- que eram seguidos por gargalhadas contagiantes. Ainda não consigo imaginar como vou ficar sem elas.
Ele gostava de falar e de ouvir. Ouvia para aprender o que falar, e falava para que os outros ouvissem, atentamente. Ele odiava quando eu corrigia uma informação ou fato que ele contava, mas ele adorava que era eu quem o fazia.
As opiniões dele eram fortes, e todas, do macro ao micro, estão para sempre impregnadas em mim. Ele odiava golfe, tênis (menos o Guga), anglicismos, a frase "beijo no seu coração" e tinha uma tremenda dificuldade com a cor verde. Ele também amava os amigos, a família, o Brasil, o Corinthians, a Tropicália, os Rolling Stones, o Lulu Santos, o restaurante Rodeio, o Muhammad Ali e todos que trabalharam com ele na W, na DPZ e mais. Um dos maiores ídolos dele era Jorge Ben Jor. E ele adorava ter ídolos inteligentes, de todas as áreas, lugares, e níveis de proximidade. Ficou amigo de muitos deles e ganhou o respeito de todos.
Esses meses de internação foram horríveis, mas mesmo assim não são incompatíveis com tudo que eu contei aqui. No hospital, ele passou por momentos absolutamente extraordinários, bons e ruins, surpreendendo a todos. O mais maniqueísta dos anti-maniqueístas tinha essa capacidade de impressionar, surpreender e contradizer, aumentando sua intensa mas agora eternamente suave permanência no imaginário coletivo. Isso tudo abrangendo dos seus admiradores ao seus médicos, todos absolutamente competentes e humanos.
Ele ter passado pela primeira semana de infecção foi um milagre, dentro dos muitos que ocorreram ao longo desses meses. Esses milagres me permitiram passar mais alguns lindos momentos com ele. Sempre vou ser grato ao meu pai e sua luta por isso.
Ainda estou com muita dificuldade de digerir tudo emocionalmente, mas sei que quando conseguir o baque vai ser grande.
Nesses últimos dias, muita gente me falou que imaginava que eu e minha irmã gêmea estivéssemos chocados por toda a repercussão— e que, só agora, começamos a entender o tamanho dele. Posso falar, aliviado, que isso não é verdade. Eu vivi com ele a minha vida toda. Era impossível não saber quem e o que ele era. Como disse antes, Washington Olivetto era Washington Olivetto 24 horas por dia. Um gênio. Mas também um ser humano genuíno e afetuoso, um pai dedicado e um marido apaixonado. Tinha a mania de falar bem das pessoas pelas costas. Minha mãe era uma de suas maiores vítimas. Mas todos os seus amigos, mesmo os distantes, também foram acometidos.
Meu pai odiava clichês. Mas sou obrigado a terminar dizendo que ele se foi no último dia 13 da mesma maneira que ele viveu. Espontâneo dentro do que já era esperado, rodeado dos próximos, sempre consumindo algo da cultura do país que ele sempre amou. Enquanto ele transcendia, ele ouviu "Sintonia", de Moraes Moreira. Se foi suavemente.
Obrigado, pai. Saudades intensas suas. Nem um pouco suaves. Eu ainda tinha muito o que aprender. Puta que pariu.
Te amo.
Deixe seu comentário