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Opinião

Neymar Jr. é o Michael Jackson brasileiro

Por João Sabali*

Jovem absolutamente promissor, o mais talentoso de todos, desde criança. Pai empresário. Vida adulta infantilizada. Trajetória profissional de respeito, mas errática. Vida pessoal errática. Um ídolo que derrete diante do olhar incrédulo da audiência. Antes de seguir com as semelhanças: MJ chegou a ser o melhor do mundo no que fazia e por muito tempo. E essa não é uma diferença trivial: MJ habita um Olimpo que NJ frequentou apenas de forma imaginária.

Isso posto, falemos das semelhanças.

As curvas fechadas em sequência no asfalto molhado da serra da vida de MJ & NJ foram todas públicas. Isso deixa a coisa toda um pouco mais melancólica: tropeçar em casa é um tipo de humilhação, tropeçar em público é outro. Mas se você torcer o pé, a lesão vai ser a mesma.

Essas derrapadas, na minha opinião, acontecem principalmente porque MJ & NJ não tiveram infância. Enquanto as outras crianças (nós) estavam brincando, eles estavam se preparando pra uma missão do tamanho do mundo: estavam destinados a dominá-lo desde que se entendem por gente.

E não estamos falando de ser o melhor do mundo em computação quântica - o que já seria cruel o suficiente pra qualquer criança - mas na música e no futebol, provavelmente as expressões humanas mais populares em escala global, não só no último, mas também nesse século.

Computação quântica talvez objetivamente mais importante; pode ajudar a curar o câncer um dia, vai saber. Mas não é tão popular. E não emociona. A computação quântica é incapaz de passar no meio de Leo Moura e Luis Antonio, tabelar com Borges, dar um drible da vaca (que ninguém tinha feito antes e ninguém conseguiu repetir depois) em Ronaldo Angelim e chutar de trivela na saída do goleiro Felipe.

MJ & NJ se tornaram adultos infantis porque não tiveram infância.Com o pequenino detalhe que, uma vez crescidos, possuíam dinheiro infinito. Quem já assistiu o filme "Cheque em Branco" sabe da quantidade de cagada que uma criança com acesso ilimitado a dinheiro pode fazer. E não é só que eles têm dinheiro a dar com pau, mas também são ultra celebridades. O mundo inteiro assistindo a uma criança num corpo de adulto com muito dinheiro e muita fama. Tem como dar certo?

Bem, um tinha um parque de diversões chamado Terra do Nunca no quintal de casa. O outro vive a vida de um influencer de tiktok e passou um bom tempo simulando faltas de maneira quase lúdica de tão ingênua.

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MJ & NJ foram adolescentes que sustentavam suas famílias. Mais que isso: ainda sem idade pra votar ou comprar uma cerveja, catapultaram suas famílias direto pro topo da pirâmide social planetária. Também em ambos os casos, a sombra paterna paira ostensivamente sobre a imagem do filho. Pai já é uma figura com autoridade o suficiente, o pai-empresário se torna então um megazord afeto-autoritário que, por mais que queira acertar, erra muito. Acaba esmagando mortalmente o filho com seus imensos dedos de aço quando vai pegá-lo na mão pra fazer cafuné. MJ demitiu seu pai em 1979. Todas as músicas que lembramos de sua carreira solo foram gravadas depois desse ano.

Saudades do que a gente não viveu

"I miss my diagonal grilled cheeses. Back when Michael Jackson was still Jesus" [Eu tenho saudades do meu queijo quente cortado na diagonal. Na época em que Michael Jackson ainda era Jesus, em tradução livre]" Essa rima de Chance the Rapper talvez resuma a ópera. O brasileiro com pelo menos 30 anos de idade lembra com nitidez de quando os programas esportivos eram inundados de reportagens sobre um garoto da base do Santos que vinha redimir o país do futebol. É a versão brasileira do mito Sebastianista, só que, no nosso caso, Sebastião é a própria ideia do futebol-arte. Neymar era a reencarnação desse mito que vem surgindo na névoa de uma tarde de domingo. Sua chegada foi anunciada nos sinos das catedrais de um país futebolisticamente em ruínas. E esse país leva futebol muito a sério.

Não é pouca responsabilidade. Não é pouca expectativa.

Não é à toa que NJ é tão querido entre as crianças e adolescentes. Não é só porque ambos compartilham a mesma linguagem. É porque o jovem - qualquer jovem - carrega nas costas uma bagagem de frustrações bem mais leve que a de um adulto. E eles não viram Pelé ou Ronaldo jogarem.

O que sentimos por NJ diz mais sobre nós do que sobre ele.

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Praticamente desde que surgiu, ele carrega nas costas a expectativa e a frustração de um país inteiro. Quando falamos de NJ estamos falando de uma das coisas mais delicadas que existem: uma promessa não cumprida. Quando apareceu, NJ nos deu a capacidade de sonhar, só pra depois retirá-la de nós. Mas a expectativa sempre foi todinha nossa.

Tiremos a nossa expectativa da equação. A carreira de Neymar foi ruim? O que Neymar fez nos seus anos de Brasil foi assombroso. Fazia muito tempo que a gente não via um brasileiro jogar tão bem de maneira tão precoce dentro do Brasil. Talvez Ronaldo em 1994. Talvez Ronaldinho Gaúcho na virada do milênio. Só que o Jovem Ronaldo durou só um ano aqui. O Jovem Ronaldinho Gaúcho durou mais, mas tem basicamente a metade dos jogos e a metade dos gols do Jovem NJ, que anotou inacreditáveis 199 participações em gol em 225 jogos antes de ir pro Barcelona, onde ganhou uma Champions League sendo tão protagonista quanto Messi.

Isso sem falar que ele conquistou a primeira Libertadores do Santos depois de Pelé. Qual foi a última vez que vimos um talento brasileiro tão puro sendo exibido por tanto tempo, quarta-domingo-quarta-domingo ao vivo, aqui na nossa casa? Se você cogitou em responder o Rei Pelé, sabe que tipo de gatilho NJ ativou no brasileiro.

Se NJ não tivesse sido tão bom no início, a gente não se importaria que ele foi pra Arábia Saudita com apenas 31 anos de idade. Se ele não tivesse sido tão bom no início, você sequer gastaria seu tempo lendo um texto sobre ele.

A frustração que sentimos com NJ é basicamente a frustração que sentimos com nós mesmos, projetada em 210 milhões de espelhos. Quando nos frustramos com NJ, nos frustramos também com o fato de já não sermos a melhor seleção de futebol do planeta. NJ não foi o jogador que a gente pensou que seria. E nós não somos mais a seleção que a gente já foi um dia.

Como todo brasileiro sabe e, sobretudo, sente, o 7x1 não foi só uma goleada humilhante - a mais humilhante da história dos esportes coletivos de alta performance. Ali nós perdemos também um pedaço da nossa própria identidade individual e coletiva. Com todos os profundos problemas que enfrentamos como nação, sempre tivemos no futebol um confortável oásis em que podíamos voltar sempre que a aridez do cotidiano não fosse mais suportável. O futebol tinha o poder de afirmar que a gente podia sim ser o melhor do mundo em alguma coisa. E não qualquer coisa: no esporte mais querido do planeta. O 7 x 1 nos roubou a capacidade - pior, a possibilidade - de sonhar. Isso é tudo, menos pouca coisa.

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Por falar em pouca coisa, o dinheiro compra muitas delas. Muitas mesmo, mas preparo mental não está na lista. Ter o suficiente pra garantir saneamento básico, educação, saúde, segurança, moradia, alimento de qualidade e lazer ajuda muito a ter uma mente saudável, mas, a partir do momento que essa base é garantida, o dinheiro perde bastante de seu poder curativo. A quantidade de super ricos com graves e notórias questões de saúde mental é só uma das manifestações disso.

Cai-cai, posicionamento político, escolhas profissionais, jeito de viver a vida de maneira geral: eu não poderia me identificar menos com a ética e com a estética de NJ. Mas eu não posso exigir que ninguém seja do jeito que eu sou. As pessoas são contraditórias, mesquinhas, surpreendentes, estupendas, ridículas, tediosas, esquisitas. As pessoas são do jeito que são e, por mais difícil que seja, essa ainda é uma das belezas da vida. Assim como qualquer um pode viver a vida como bem entende, nós (as crianças que brincavam) também temos o óbvio direito de não concordar e criticar. E figuras públicas estão sim muito mais sujeitas às críticas. É o preço de ter acesso às facilidades da fama global e de ser excepcionalmente bem remunerado. Na vida, quase tudo que é muito bom também tem um lado muito ruim.

Dizem que a infância é um chão que a gente pisa a vida inteira. Imaginemos o chão que o NJ tem pisado desde que o pai viu ele chutando uma bola pela primeira vez em uma quadrinha de cimento de Mogi das Cruzes. Aquele que já foi a esperança de uma nação, corre o risco de entrar pra história apenas como o jogador mais caro de todos os tempos. Difícil um recorde mais sintomático dos nossos tempos. E difícil achar uma personalidade pública que incorpore mais o sentimento de estar vivo em 2024 do que Neymar.

Ah, só mais uma coisa: se NJ ganhar uma Copa do Mundo ele imediatamente volta a ser JC.

*João Sabali é jornalista, escritor e roteirista.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL

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