"O futebol brasileiro não é o Flamengo de Jesus". A quarentena de Tostão, 1
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Tostão está em quarentena. O craque da Copa do Mundo de 1970 e colunista da Folha de S. Paulo já passava mais tempo em casa, mas ainda assim estranha a reclusão. "Sinto falta de caminhar, ir ao restaurante, teatro. Mas temos que esperar e confiar". Por telefone, em uma hora e 11 minutos de conversa, o tricampeão mundial foi dos anos 1950 aos dias de hoje. Na primeira das três partes da entrevista que o blog publica, falou sobre o futebol praticado no Brasil, antigos jogos revistos, evolução tática e Pep Guardiola.
Como está vendo as comparações entre jogadores do passado e do presente?
Não gosto de fazer essas comparações. Não tenho esse hábito, mas é uma prática que parece seduzir as pessoas. É difícil comparar por dezenas de detalhes, tipo do jogo de cada época, a condição física, qualidade das equipes. Você colocar dois jogadores em parâmetros próximos é impossível, então acaba sendo uma comparação cheia de erros e dificuldades. Como eu vivi essas épocas todas e comecei a acompanhar futebol na Copa de 1958, podemos notar a qualidade dos times, quem se destacava mais, o mais habilidoso. E há sempre erros e um excesso de comparações, algumas totalmente sem sentido, porque não tem assunto.
E há saudosismo...
Evidentemente nessas comparações há a turma que acha que no passado é que era bom e confunde saudade com saudosismo, faz-se avaliações totalmente equivocadas, como se no passado tudo fosse melhor e não houvesse coisas ruins. Há ainda quem acompanhe apenas da época da internet para cá, e não consegue olhar o futebol do passado como deveria, porque era aquele momento. Mas muita coisa surpreende, quando você vê os jogos do passado. "Verdades" como "os espaços eram enormes". Claro que eram, mas você vê uma seleção inglesa jogar em 1970 e percebe como eles marcavam atrás com nove jogadores, então há detalhes que não correspondem à realidade da época. Nossa seleção de 1970 tinha o hábito de voltar e marcar do meio-campo para trás. Isso na época não existia, foi uma novidade, nos preparamos até fisicamente para fazer aquilo, que hoje é prática comum. Aí a pessoa vê um jogo da seleção de 1970 e acha que aquilo corresponde ao futebol daquela época, mas não era. Há muita confusão nessas comparações
Você tem visto jogos antigos nessa quarentena? O que tem achado?
Vi Real Madrid x Barcelona, de dez anos atras, Brasil x Inglaterra de 1970, a seleção de 1982 duas ou três partidas. Tenho escolhido alguns para ver e é aquilo que falei, você pinça uma realidade, um momento que não correspondia ao futebol da época, pega uma coisa diferente daqueles tempos, mas evidentemente há uma diferença grande de intensidade. Mas existem exageros, como quando alguém fala que o Gérson jogava muito porque parava a bola, olhava e depois passava. Fica a impressão de que ele era somente aquilo, mas foi muito mais, um dos jogadores de meio-campo mais inteligentes na marcação que vi, pois se posicionava bem e orientava os demais. Um técnico em campo! Mas criam-se rótulos, como "Gérson era somente lançamentos", entre outros. Nossa sociedade vive de radicalizações. Gosto disso, não gosto daquilo... E o futebol vai, em alguns casos, no mesmo caminho. Acho que, como analista, sou privilegiado, pois vivi esses 50 anos, 60 anos de futebol e sua evolução.
Qual conclusão a que se pode chegar olhando mais profundamente velhas partidas? Houve algo que o surpreendeu?
Brasil x Argentina de 1990. Eu vi várias vezes o Boca Juniors do (Carlos) Bianchi vir aqui e ganhar os jogos dessa maneira. Montava as duas linhas de quatro, atraía o time brasileiro e ganhava o jogo. Aqui esse tipo de estratégia não se fazia. Esses jogos mostram detalhes que fogem aos rótulos. Até a final da Copa de 1970 nós discutíamos antes do jogo, na véspera, criamos duas coisas para fazer. E elas aconteceram. Uma, a entrada do Carlos Alberto, quando o Jairzinho ia para o meio e Facchetti o acompanhava. Isso foi pensado e discutido. Outro detalhe que nós combinamos é que a Itália jogava com linha de quatro e um quinto atrás dos quatro que marcavam individualmente. O líbero ficava na cobertura e se alguém fosse batido, ele entrava na jogada. Combinamos que eu jogaria entre os quatro e esse líbero. Ele me marcava e eu o marcava, então nós dois participamos pouco do jogo.
Eram preocupações táticas...
Desde aquela época a tática era muito importante. O Brasil tinha um grande time em 1970, com talento individual e estratégia. O pessoal diz que o time de 1970 não tinha tática etc. Isso é coisa de gente que não acompanha a evolução do futebol. Era impressionante como os ingleses voltavam rápido e fechavam a entrada da área em 1970. O Zagallo treinava uma, duas horas o posicionamento, linha de três na frente, quem tinha de voltar e fechar uma barreira. Jairzinho pela direita voltava e formava uma linha de quatro no meio campo. São detalhes e coisas do passado que não representam o que era o futebol, daquela época. A mesma coisa acontece hoje, a gente vê alguns jogos que acontecem, mas não são a atual realidade. O que mais me incomoda são os rótulos, que passam de pai para filho, os jornalistas falam e outros repetem, repetem e vira verdade. Há pouca preocupação em estudar melhor as coisas, mas sim em viver de manchetes, criar rótulos e verdades. Isso é ruim até para a parte técnica, e os treinadores vão na mesma toada e não evoluem, não crescem.
Qual a importância do Barcelona de Guardiola para o futebol e sua evolução?
Sim, aquele time virou um ensinamento, muitos passaram a usar coisas vistas nele. Como nosso time de 1970 era totalmente diferente da média dos times brasileiros. Como a Holanda de 1974 e a Inglaterra de 1966 e suas duas linhas de quatro, que era uma revolução. Depois da Holanda de 1974 havia a tentativa de fazer aquele jogo de pressão, marcação em cima, mas não se conseguia fazer, porque não havia preparo físico, não sabiam fazer, então um pressionava e outros não. Houve uma ou outra exceção.
Há um paralelo atual?
Daqui a 30 anos vão achar que o futebol jogado no Brasil é o do Flamengo de (Jorge) Jesus. Não é. Pinçam momentos históricos, o próprio Liverpool é um momento histórico, com a forma própria de jogar.
Nesta quarta-feira, na segunda parte da entrevista, Tostão fala dos defeitos (ela também os tinha) da seleção brasileira de 1982 e o que aconteceria, na opinião dele, se Brasil e Itália daquela Copa do Mundo se enfrentassem dez vezes.
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