Mauro Cezar Pereira

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Sócios do São Paulo rejeitaram reforma que tinha até 'reeleição automática'

por Alexandre Giesbrecht*

No último sábado, os sócios do São Paulo rejeitaram uma revisão do estatuto do clube, proposta por uma comissão especial criada para esse fim. Para quem olha de fora, parece apenas uma expressão corriqueira da vontade da maioria -- no caso, uma maioria de 53,5% (639 votos a 554). Entretanto, dentro dos muros do Morumbi as coisas nunca são tão simples.

A revisão estava prevista na versão atual do estatuto, em vigor desde 2017, e seguiu todos os passos previstos antes de ser votada numa assembleia geral. O que faltou nela foram detalhes que não estão previstos no documento, como pluralidade de ideias na comissão e um debate amplo entre os associados, muitos deles pegos de surpresa por uma votação num sábado no meio das férias de julho.

Durante o processo, os sócios puderam enviar sugestões à comissão, e muitos fizeram isso. Temas importantes estiveram estre essas sugestões, como o voto direto para presidente — hoje escolhido por um colégio eleitoral de 260 pessoas, de maneira similar à ditadura militar (1964-1985) — e a separação entre o futebol profissional e a área social. Esses dois assuntos, inclusive, foram os mais sugeridos, algo facilmente comprovável, pois os formulários estão disponíveis publicamente.

No entanto, ambos foram solenemente ignorados, e nenhum tipo de justificativa foi dada aos vários sócios que perderam seu tempo preenchendo o burocrático formulário. A lista inicial conteve 39 itens, mas nenhum deles tratava disso, apesar de promessas feitas em 2021 de que haveria debate sobre elas quando chegasse o momento da revisão.

Só que isso foi feito a portas fechadas, com a decisão final sendo comunicada de cima para baixo. Havia a possibilidade de emendas, também enviadas por vários associados, mas nenhuma delas foi aceita, e, da mesma maneira, nenhuma justificativa foi dada.

Assim, chegou-se às 39 propostas de alteração que foram votadas no sábado, em bloco: ou seja, todas seriam aprovadas ou todas seriam rejeitadas. E isso foi um grande problema, pois entre elas havia algumas realmente nocivas, não só à instituição, como ao próprio sócio. Havia alguma coisa positiva, é verdade, mas a maioria desses itens tinha pouca relevância ou nem precisaria estar no estatuto. Um bom exemplo disso é a obrigatoriedade de publicação do orçamento anual do clube, que poderia ser feita sem a necessidade de uma ordem da "constituição" do clube.

Assim, essas migalhas positivas não chegavam nem perto de compensar os potenciais malefícios de alguns outros itens. Um deles era a extensão do mandato dos conselheiros, de três para seis anos. A medida foi defendida pela gestão do presidente Júlio Casares com argumentos absurdos, como o fato de não influenciar no mandato do presidente, que permaneceria de três anos e uma possibilidade de reeleição, mas com o mesmo colégio eleitoral sendo responsável pelas duas escolhas. Basicamente, uma reeleição automática.

E esse não foi o único argumento nem o mais absurdo. Outro foi de que "eleições atrapalham o dia a dia do clube", a ponto de o diretor geral do clube social, Antônio Donizeti Gonçalves, o Dedé, gravar um vídeo mostrando a suposta inconveniência de um dos ginásios do clube ficar fechado por dois dias para a votação de ontem.

"Seis anos está muito bom", disse Dedé, num vídeo que surpreendentemente permaneceu no ar nos Stories de seu Instagram até expirar. Ele não explicou, porém, como 0,09% dos dias ao longo de seis anos seriam um inconveniente tão grande a ponto de tirar ainda mais da pouca democracia existente no clube.

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Outro ponto danoso era a criação de suspensões preventivas de associados com base em um critério subjetivo como a "harmonia social". Os defensores dessa medida citavam casos graves como estupros, sem citar o que foi feito quando algo assim ocorreu — e nem se já ocorreu. Seria um bom argumento, se não fosse pelo fato de que isso não foi detalhado na proposta.

Esta se referia a casos considerados "graves" pelo regimento interno, cujo texto fala em qualquer infração cuja pena fosse superior a noventa dias. E sabe o que tem pena de 120 dias, por exemplo? "Ofensas feitas em redes sociais"! É claro que "ofensa" é algo subjetivo, mas quem definiria isso seria um comitê disciplinar nomeado politicamente. Percebe o perigo?

E eles não pararam por aí: quiseram acabar com os debates nas reuniões do Conselho Deliberativo que tratam de contratos assinados pelo clube, impedindo que detalhes importantes fossem levados ao conhecimento de mais conselheiros. Como muitos deles não têm capacidade ou competência para avaliarem esse tipo de documento, poderiam aprová-los ou rejeitá-los conforme a orientação de seus grupos políticos.

A oficialização do amadorismo também estava prevista na reforma, dando ao presidente do clube uma maior flexibilidade para nomear "abnegados" para cargos na gestão do clube. Era mais uma tentativa de tornar legal o cargo do diretor de futebol Carlos Belmonte Sobrinho, que, ao ser mantido como tal, viola nada menos que dez artigos do estatuto já há mais de três anos e meio. Por isso, a medida ficou popularmente conhecida como "Cláusula Belmonte".

Por falar nela, vale lembrar que algo similar já havia sido tentado em 2021, quando foi proposta uma reforma do estatuto, esta de maneira casuística, embora seguindo os ritos legais, mas também marcada pela mais completa falta de debate. A suspensão preventiva para manutenção da "harmonia social" e a extensão dos mandatos dos conselheiros também estavam previstas naquele texto, inclusive.

Aquela proposta também foi rejeitada em bloco, já em janeiro de 2022, numa derrota histórica da situação, algo que nunca tinha ocorrido na história do clube, desde 1930. Na época, Casares escreveu em seu Instagram que era preciso "seguir a vontade do sócio", mas menos de sete meses depois foi proposta uma nova reforma, agora contendo apenas um item: a reeleição do presidente.

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O mandatário tentou descolar-se dela, como se fosse algo proposto por outrem — oficialmente, foi —, mas empenhou-se muito na aprovação, com uma assembleia geral realizada apenas uma semana antes da primeira final internacional do time em dez anos.

Com a máquina eleitoral sendo usada massivamente, com direito a jantares, churrascadas, cervejadas e afins, além de táticas bastante questionáveis (o formato da votação foi divulgado apenas no próprio dia, com os contrários à medida fazendo campanha pelo "não", quando o que estava na cédula era "rejeito"), a reeleição foi aprovada.

Não que a reeleição em si seja necessariamente um problema, mas já foi válida para Casares, em pleno mandato. Curiosamente, apenas seis anos antes, na reforma anterior do estatuto, ele havia feito campanha contra a possibilidade de um novo mandato do presidente.

Agora, como vimos, ele novamente deixou de seguir a vontade do sócio, propondo mudanças que já tinham sido rejeitadas, mas, mais uma vez, sofreu uma derrota histórica. Assim como já havia feito antes, pregou que "o resultado das urnas é soberano". Como já temos os precedentes, resta saber quanto tempo levará até que seu grupo político volte a propor a perpetuação no poder, o fim do debate no Conselho, a oficialização do amadorismo e, claro, um cala-boca menos burocrático para os sócios que ousarem se indispor com o poder.

Num clube que dispões de mais de trezentos cargos de diretor adjunto, assessor e similares para distribuir, é muito simples construir uma base que vai fazer o que estiver ao alcance para perpetuar um sistema que faz mal à principal razão de ser do clube, que é o futebol, inserido num ambiente cada vez mais profissionalizado, enquanto é gerido de maneira amadora como se ainda estivéssemos nos anos 1960.

* Alexandre Giesbrecht é historiador, responsável pelo boletim diário "Anotações Tricolores" e pelo perfil no Twitter @jogosspfc

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL

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