Flamengo: 129 anos de glórias e uma mancha na história, as 10 mortes no CT
Por Darlei Constante Pisetta e Lêda Raquel Manske Pisetta*
A história rubro-negra alcança o marco de 129 anos neste mês de novembro. Mesmo no território das paixões clubísticas, a data é indiscutível para reverenciar a tradição, o vigor e o protagonismo do Flamengo em diversas modalidades do esporte. Do remo, ginástica, vôlei, basquete e culminando no futebol, a história do clube exibe conquistas inesquecíveis, nacionais e internacionais. Não por acaso, o tricolor Nelson Rodrigues, ao contar a história de dissidência que resultaria na criação do Flamengo, decretou: "cada brasileiro, vivo ou morto, já foi Flamengo por um instante, por um dia".
A "memória da história", que estabelece identidade e pertencimento, está conectada tanto aos triunfos como a quedas, tropeços e fracassos. Sob este prisma, a trajetória dos 129 anos de existência do Flamengo não pode prosseguir sem um acerto de contas com a madrugada de 8 de fevereiro de 2019, no Rio de Janeiro, no Centro de Treinamento, conhecido como Ninho do Urubu. Ali, depois de um incêndio cuja causa foi falta de planejamento, organização e ausência de medidas de segurança, dez atletas da base do clube, com idades entre 14 e 16 anos, perderam a vida.
O rol de transgressões - cometidos pelo Poder Público e pelo Flamengo - consagraram, mais uma vez, a vitória da cultura nacional de tolerar os descasos e não se importar concretamente com riscos, prevenção e segurança. Seja como for, quase 6 anos depois, ninguém foi responsabilizado. O caso segue nas gavetas do Judiciário e os oito réus arrolados pelo Ministério Público respondem em liberdade. Como Brumadinho e Mariana, repete-se o enredo de outras tragédias brasileiras: ninguém é responsabilizado de nada.
Quais as lições extrair da tragédia?
O primeiro aspecto é compreender o papel do Judiciário na responsabilização como fator inibidor de tragédias futuras e anunciadas. Indenizações, acordos, multas e todo um rol de compensações financeiras são insuficientes se não forem acompanhados de efetivas responsabilizações. Cabe lembrar que a existência de alojamentos improvisados e precários é fruto da não observância do artigo 29 da Lei Pelé, de 1998, que obriga as entidades esportivas a "manter alojamento e instalações desportivas adequados, sobretudo em matéria de alimentação, higiene, segurança e salubridade".
Portanto, não se trata de "punitivismo", mas a compreensão de que punições justas têm o poder de desestimular a negligência e reprimir a imperícia criminosa. Em resumo, quando todos saem impunes, quando não há condenações atribuídas a organizações privadas, agentes públicos, profissionais - e a quem quer que seja - abrem-se as portas para a repetição de atos com alto poder de gerar perda de vidas humanas e destruição. Sanções servem de lições para que cada instância de responsabilidade atue com diligência na gestão da segurança e proteção da vida.
Para nós, familiares dos garotos, as demais lições deixadas pelas perdas no Ninho do Urubu, apontam para a necessidade de construir um legado social em torno de um novo paradigma na gestão esportiva envolvendo as categorias de base no Brasil.
Se não ocorrerem transformações estruturais, novos alojamentos clandestinos e precários estarão à espreita das futuras gerações. Cenário inaceitável, antes de tudo, pela ameaça frontal à integridade dos atletas. Mas a precariedade implica outros riscos, tanto nas categorias masculinas como femininas, como as intimidações, assédio moral, importunação sexual e outras violências neste ambiente de formação de adolescentes.
Exceto o Ministério Público, nas questões relativas, principalmente, às condições de trabalho, não existem, com clareza, instâncias e mecanismos de controle e de regulação. Os relatos que recebemos dão conta de que há alguns clubes um pouco mais preparados e uma vasta maioria onde adolescentes e jovens não contam com alimentação acompanhada de nutricionistas, estão submetidos a ensino de baixa qualidade, além de instalações desconfortáveis, insalubres e degradantes.
Além da infraestrutura inadequada, outra grave carência é o suporte educacional. A orientação profissional, capacitação para o futuro e supervisão psicológica estão longe de preparar os futuros atletas como cidadãos de um mundo globalizado.
A qualidade da preparação escolar deve ser uma prioridade. Há muitos casos de evasão, escolas meramente de fachadas, ou em condições pedagógicas insuficientes. A formação, enquanto o adolescente se prepara para iniciar sua carreira esportiva, requer abordagem integral onde a prática do futebol não pode se impor sobre as exigências do conteúdo escolar e da formação de caráter.
Algumas experiências internacionais, na gestão das categorias de base, merecem observação, como o Barcelona, na Espanha, e clubes da Alemanha. Aliás, a Alemanha, a partir de 2002, reformulou todo o trabalho nas categorias de base, valorizando a formação de atletas de ponta a partir de centros de treinamento estruturados e avaliados constantemente para verificação do atendimento a critérios como organização, recursos humanos, infraestrutura, estratégia, educação, comunicação e efetividade no desenvolvimento dos jovens.
Em resumo, quase seis anos após a tragédia do Ninho do Urubu, do Flamengo, houve poucos avanços para a proteção integral e a garantia de direitos destes adolescentes em formação nos clubes brasileiros.
O Flamengo, aos 129 anos, enquanto instituição que tem na história a perda irreparável de dez jovens, deixa muito a desejar. Da sua torcida, ao contrário, nossa gratidão por insistir na memória de 10 jovens e sonhadores atletas. A partir de uma paródia da música "Azul da Cor do Mar", de Tim Maia, a torcida rubro-negra tem cantado no Maracanã: "...São 10 estrelas a brilhar/No céu do meu Mengão/Ah, como eu queria ter vocês aqui/Honrando o manto do Mengão/Com raça e paixão/Mas essa nação jamais vai esquecer..."
A emoção da torcida inspira a nossa luta por um novo presente e um futuro onde garotas e garotos apaixonados pelo futebol, acolhidos e protegidos, sigam em frente em busca de seus sonhos.
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Quero receber* pais do atleta Bernardo, 14 anos, uma das vítimas do Ninho do Urubu. Darlei é diretor da Associação dos Familiares de Vítimas do Incêndio do Ninho do Urubu (AFAVINU).
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