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Perrone

REPORTAGEM

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Para idealizador da SAF, compra do Cruzeiro por Ronaldo dá credibilidade

Ronaldo no anúncio como dono do Cruzeiro - Reprodução/Instagram
Ronaldo no anúncio como dono do Cruzeiro Imagem: Reprodução/Instagram

23/12/2021 04h00

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Para o advogado José Francisco Manssur, um dos formuladores do projeto de lei que viabilizou a SAF (Sociedade Anônima do Futebol), o acordo para a compra do Cruzeiro por uma empresa de Ronaldo dá mais credibilidade ao processo de transformação dos clubes em empresas no Brasil.

Em entrevista ao blog, ele falou ainda da importância da SAF também para clubes organizados financeiramente e sobre a necessidade de torcedores serem ouvidos no processo. A seguir, leia a entrevista na íntegra.

Blog de Perrone - Na sua opinião, qual o impacto que a venda do Cruzeiro para uma empresa do Ronaldo deve ter na transformação de clubes em SAFs? Deve estimular novas operações?

José Francisco Manssur - Acho que foi mais um fato muito positivo para o processo das SAFs, dentro de vários outros que aconteceram desde a tramitação, que o primeiro clube que anunciou a venda de ações tenha tido as ações adquiridas pelo Ronaldo, sabe? Um ídolo mundial, uma figura conhecida, com um rosto, quebra um pouco aquele estigma meio usado como tentativa de inibir o processo. De que seria um investidor estrangeiro, sem rosto, que a gente não conhece. Não só o Ronaldo, né? A própria XP Investimentos, uma empresa listada na bolsa, com credibilidade, com a forma como eles cuidam do nome deles, ter dado a consultoria, também mostra que a lei da SAF foi muito estudada, né? Que gente séria olhou o que está na lei e sentiu segurança para investir. E isso dá um aval para quem está em dúvida, tanto do lado do investidor, quanto do lado do clube.

Eu mesmo no dia falei, "puxa vida, mais um lance de fortuna, de sorte para a gente que lutou tanto por esse projeto [de lei] que o Ronaldo tenha sido o primeiro. E que a repercussão tenha sido monumental. Deve ter atraído os olhares a semana inteira, né? De muita gente que, com toda razão, porque ninguém é obrigado a confiar e acreditar, era cético em relação ao processo. Então isso já vai dando mais uma dose de confiança. Claro que acreditar definitivamente só quando o processo der certo, e eu acredito que isso vai acontecer.

Acho que [o Ronaldo] traz uma credibilidade. Acho que dialoga com o torcedor quando ele vê que foi o Ronaldo que adquiriu um clube grande, uma marca gigante do Brasil, uma cara que ele conhece, alguém com quem ele conviveu, né? Ao longo desses anos todos vimos jogar, acompanhamos a vida do Ronaldo, as lesões, as voltas por cima, certo? E isso é muito positivo.

Blog - O fato de a primeira operação envolver o Ronaldo não pode gerar a cobrança de torcedores para que seus clubes só sejam vendidos para um ídolo?

Manssur - Acho que a cobrança do torcedor pode existir. Mas as pessoas precisam entender que não há um Ronaldo em cada clube do Brasil. Nós não temos um ídolo formado em outros clubes que tenha essa iniciativa que o Ronaldo teve já há alguns anos de se tornar dono de clube futebol, de se apresentar como um gestor, o que ele já faz na Espanha.

Então, eu acho que o torcedor rapidamente vai perceber que não é comum, não vai ser o normal um ex-atleta. Pode ser que um ex-atleta bem-sucedido possa até ser a cara de um grupo de investidores, a cara de um conglomerado financeiro para emprestar seu nome e sua credibilidade. Mas não é o ponto mais comum, né?

Essa do Cruzeiro realmente foi especial por ser a primeira, por ser a do Ronaldo. E até merecido, porque o presidente do Cruzeiro, Sérgio [Santos Rodrigues], trabalhou muito pela aprovação da lei da SAF. No Congresso Nacional, na Câmara, com o relator, que foi muito importante, o relator da Câmara.

Blog - Quais os pontos positivos e negativos para o Cruzeiro na operação na sua opinião?

Manssur - O ponto positivo no caso do Cruzeiro é a esperança, né? É a forma como o Cruzeiro reverteu anos nos quais o torcedor do Cruzeiro e toda a comunidade não viam um futuro para situação do Cruzeiro. Um time com três participações de série B seguidas, com uma situação financeira muito difícil. É impressionante como mudou a forma como o torcedor do Cruzeiro vai passar esse Natal, com todo o direito de ter esperança.

Esperança não significa que é uma varinha mágica que vai dar certo. Mas o torcedor do Cruzeiro está muito mais confiante do que estava. E para o mundo do futebol isso faz muito bem.

O ponto positivo, eu vejo, é que nesse processo o Cruzeiro vai ter uma condição para negociar sua dívida, aquelas que já forem execução civil trabalhista, né? O Ronaldo, o anúncio já menciona um plano de pagamento das dívidas, ou seja, não fica mais aquele buraco que a gente não vê um final para ele porque era a situação que ainda é, que deve um bi. Agora a gente vê uma perspectiva de melhora.

Sobre o aspecto negativo, o que eu poderia destacar? Eu poderia destacar que o anúncio foi feito antes, né? Na forma de uma proposta vinculante, mas uma proposta. Eu entendo a questão do tempo, mas talvez, por cautela, esse anúncio poderia ter sido feito já com os contratos, com a auditoria, com a due diligence feita. Mas acho que, pelo impacto positivo, esse aspecto negativo se diluiu muito.

Blog - Concorda que, de maneira geral, a transformação em SAF é vista como única saída para clubes endividados? Esse modelo tem atrativos também para agremiações em situação financeira equilibrada? Quais atrativos?

Manssur - É muito interessante a gente ver esses dois grupos aderindo à SAF. De um lado a gente tem o Cruzeiro, a gente tem o Botafogo, a gente tem o Vasco. Clubes com situação financeira complicada e que vão usar os mecanismos de pagamento das dívidas previstos na lei da SAF para realmente criarem fôlego financeiro que realmente hoje não existe.

Mas, ao mesmo tempo, a gente vê Athletico Paranaense, a gente vê América Mineiro, a gente vê clubes em situação financeira bastante bastante regular e que apostam na SAF pela perspectiva, que a gente fala desde a aprovação da lei, de que como associação você bateu no teto da sua capacidade de evoluir, de receber receita nova. O que o Athletico Paranaense está falando para a gente quando ele cria a SAF é: "eu quero ir para outra prateleira". O América Mineiro fala: "eu quero ir para outra prateleira, e como associação eu estou bem, o torcedor está satisfeito com o meu desempenho, mas eu não passo de determinado teto. Eu quero criar um fluxo que entre dinheiro para eu poder passar a ser um clube que ocupe outra prateleira no futebol brasileiro". E isso é muito interessante, a SAF não foi feita só para os clubes que estão quebrados. Essa surpreendente capacidade de convencer os clubes, tantos clubes, tão rapidamente, considerando que os vetos [a pontos da lei] só caíram em 28 de setembro, mostra que existem dois grupos. Tem o grupo que realmente vê na SAF uma esperança de sair de uma situação muito difícil, mas também tem o grupo de clubes que veem na SAF a expectativa de atingir outro patamar

Blog - Acredita que ainda existe muita resistência de torcedores e conselheiros de clubes contra a SAF? Que argumento você usaria contra essa resistência?

Manssur - Perrone, eu estou muito surpreso. Não esperava e acho que ninguém esperava, tudo que a gente ouviu durante a tramitação da lei, mesmo assim, quando a lei foi promulgada em agosto houve quem dissesse: "ah, a lei não pegou". Algo como vinte dias depois de ela ser promulgada. A partir do momento em que os vetos da parte tributária foram derrubados, a adesão está muito acima de qualquer expectativa. Isso mostra o quê? Que a gente tem torcedores pressionando. E a gente tem dirigentes olhando isso de uma forma mais responsável, mais adulta, sem se preocupar só com a perda dos poderes. Da mesma forma que, infelizmente, há clubes nos quais isso ainda é um dogma, clubes nos quais o dirigente, o conselheiro ainda tem uma perspectiva de achar que tem que preservar o seu poder a todo custo, mesmo que isso custe que o clube não evolua, que o clube não melhore e mesmo contra a vontade do torcedor. Aí é muito importante dizer: que sistema de representatividade é esse? Que pseudodemocracia é essa em que duzentos conselheiros fazem algo que claramente, e hoje, com as redes sociais, a gente pode ver isso claramente, é contra a vontade de milhões de torcedores?

Qual é o papel do torcedor nesse processo? Ele é um mero pagador das contas, ele é o cara que vai lá, paga a bilheteria para o clube para entrar receita para o clube, assiste o jogo na TV para dar audiência para entrar receita de TV e na hora de decidir o conselheiro decide ignorando a vontade do torcedor? Isso precisa ser visto.

Nem todos os clubes precisam se constituir em SAF, mas eu acredito que todos os clubes deveriam ouvir e respeitar a vontade do torcedor. É ele que paga a conta. O dono do clube não é o associado nem o conselheiro, ele é também. O verdadeiro dono do clube é o torcedor. E o nosso sistema associativo já mostrou que, em muitas situações, inclusive recentes, o torcedor está sendo ignorado. E isso é um péssimo negócio porque, se o torcedor perceber que está sendo ignorado e diminuir aquele vínculo com o clube, aí o clube não tem mais saída mesmo. Então, ignorar o torcedor, além de ser não correto, além de ser injusto, além de não ser moral, nem ético, ainda pode ser um péssimo negócio para o clube.

Mas, chegando no final do ano, o sumário é muito positivo, né? Nós jamais esperávamos em tão pouco tempo, sabe? A gente até pegou o exemplo português, que demorou um pouco para os primeiros clubes quererem aderir, e aqui as coisas estão sendo muito mais rápidas. Importante que seja com segurança. A SAF não é varinha mágica, não é solução, precisa de gestão, precisa de governança. Dá uma esperança grande para o futebol brasileiro a partir do ano que vem.