Sauditão deturpa a essência da competitividade no futebol
O investimento sem precedentes da Arábia Saudita no futebol tem sido discutido sob alguns prismas, a moralidade de trabalhar para uma ditadura, a opção de jogadores por dinheiro em vez da elite do esporte. O que não se debate é que a Liga Saudita, o Sauditão, deturpa o próprio sentido de esporte, de competitividade do futebol, e afeta todos os mercados pelo mundo.
Ora, por que há essa subversão se o campeonato é disputado por 18 times com regras iguais às europeias? Os europeus não tiveram maiores orçamentos por anos e compraram jogadores de outros países?
Bem, os times europeus têm donos diversos e a maioria deles gera a receita para gastar com seus elencos. Essa receita é obtida com vendas de direitos de TV, marketing e bilheterias.
Sim, há distorções como o PSG, Manchester City e Newcastle, cujos donos são Estados. Neste caso, há investigações de fair play financeiro para tentar limitar esses investimentos sem origem no futebol. Os sistemas da UEFA e da Premier League, diga-se, são bem falhos. Mas esses times são um competidor da tabela.
Na Liga Saudita, o investimento grosso é feito pelo PIF (Fundo Soberano da Arábia Saudita). No final, é um dinheiro do Estado e que foi para o futebol por conta de decisão do príncipe Mohammad Bin Salman, que pretende usar o esporte como modernização e limpeza da imagem do país.
O Estado, no final das contas, estatizou (falar em privatização neste caso não faz sentido) quatro dos 18 clubes da Liga. São o Al-Hilal, A Nassr, Al-Ittihad e Al-Ahli. Esses clubes têm uma injeção de dinheiro muito superior aos outros times, com estrelas internacionais como Benzema, Cristiano Ronaldo, Firmino, Kanté, Neymar.
Ora, uma só instituição, um Estado no caso, decide quais times da liga serão os mais fortes. E forma uma seleção de estrelas para jogar com outros times bem mais fracos, ainda que tenham investimento.
Imagine que, no Brasil, o Estado Brasileiro decidisse injetar todo o dinheiro gerado pela Petrobras para reforços de Corinthians, Flamengo, Palmeiras e São Paulo. E deixar o Brasileiro desequilibrado artificialmente, com dinheiro público. Seria um escândalo.
Como conceito de esporte, não seria aceito em nenhum lugar no mundo. Aliás, é uma corrupção do futebol porque acaba com qualquer sentido competitivo de um clube que é premiar o mérito. Um clube tem mais torcida ou é gerido de forma mais eficiente, consegue mais dinheiro, investe mais e melhor, e forma times campeões.
Há diferenças grandes em orçamentos pelo mundo. Mas são fruto do crescimento dos clubes por anos, de suas torcidas, de suas gestões, não injeções aleatórias de dinheiro. Há as exceções já descritas, e outras menores por conta de recursos de mecenas.
Além disso, a injeção sem precedentes e artificial de dinheiro feita pela Arábia Saudita já causa uma distorção em todo o mercado do futebol. Cada jogador que recebe oferta milionária sai ou o clube tem que aumentar seu salário. No geral, o mercado ficará inflacionado para todos os clubes que têm de gerar dinheiro com meios próprios.
O capitalismo é elemento presente no futebol e no esporte. Mas ele funciona dentro de uma lógica associada ao futebol, não se sobrepondo completamente como ocorre agora.
O projeto da Arábia Saudita é uma injeção de dinheiro sem precedentes para montar um show estilo globetrotter por um projeto de Estado de uma ditadura. Os jogadores que aceitam propostas para jogar esse tipo de torneio estão no seu direito. Mas é fato que contribuem para algo que não tem nada a ver com a natureza essencial do futebol.
PS Os questionamentos sobre a moral de prestar serviços para a ditadura da Arábia Saudita são pertinentes e já foram tratados neste blog na compra do Newcastle.
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