Proibição de cerveja assusta no Qatar, mas foi normalizada em São Paulo
Classificação e Jogos
Coube ao The New York Times produzir a primeira grande manchete global da Copa do Mundo: o Qatar proibiu cerveja nos estádios. A informação, depois confirmada pela Fifa, repercutiu no mundo inteiro, evidenciando um aspecto que cerca de medo o Mundial levado ao Qatar: a indisposição do governo local em flexibilizar as conservadoras regras locais pensando nos visitantes, na Fifa e, claro, nos patrocinadores.
Eventos globais, como uma Copa do Mundo, reúnem em um mesmo lugar — no caso, em um país que tem metade do tamanho de Sergipe, que é o menor estado brasileiro — centenas de milhares de pessoas de vários cantos do mundo. Torcedores com hábitos diferentes e acostumados a regras também diferentes, mas que precisam ser regidos por leis únicas, que também abarcam a população e os costumes locais.
É daí que vem o "padrão Fifa". Independente de onde aconteça o Mundial, e das demandas locais, os estádios precisam cumprir um caderno de encargos. Mas isso também vale, ou deveria valer, para limites legais de comportamento e de direitos. A ideia é que a experiência de se assistir a um jogo de Copa seja igual na África do Sul, no Brasil, no Qatar ou nos EUA.
Há anos já se discutia, contudo, até que ponto o Qatar estaria disposto a flexibilizar sua política de repressão às bebidas alcoólicas, que não são exatamente proibidas, mas são de difícil acesso. Esta semana, a Budweiser chegou a mudar os pontos de venda de cerveja dentro das "venues" (a região no entorno do estádio que fica dentro de um perímetro Fifa) para pontos mais distantes do centro da arena.
Uma das alternativas era utilizar regras semelhantes à adotada na Inglaterra desde 1985. Lá, até é permitido comprar cerveja dentro do estádio, mas é proibido beber na arquibancada. Então é comum que os torcedores bebam muita cerveja de uma vez só antes da partida ou durante o intervalo, o que acelera o processo de embriaguez. No ano passado, o Partido Conservador apresentou propostas de alteração de legislações esportivas, incluindo o fim da proibição de beber olhando para o campo.
No Brasil, tanto no estado de São Paulo quanto no do Rio Grande do Sul a venda de bebida alcoólica segue proibida, por decisão recente dos governadores, ambos do PSDB, que vetaram flexibilizações aprovadas nas Assembleias Legislativas. Juntos, os times paulistas e gaúchos venderam 1 em cada 3 ingressos do último Brasileirão.
Em São Paulo, a venda é proibida desde 1996 por lei estadual aprovada ainda como consequência de uma batalha campal entre as torcidas de São Paulo e Palmeiras no Pacaembu no ano anterior. Em 2003, o Estatuto do Torcedor ampliou as regras nacionalmente ao colocar como condição de acesso e permanência em estádios "não portar objetos, bebidas ou substâncias proibidas ou suscetíveis de gerar ou possibilitar a prática de atos de violência".
Para organizar a Copa das Confederações, a Copa e a Olimpíada e atender o "padrão Fifa", contudo, o governo federal abriu exceções para a venda de bebidas alcoólicas nos estádios e ginásios e abriu brecha para se questionar o argumento de que bebidas alcoólicas são vetadas por risco de violência. Até porque não foi registrada nenhuma confusão mais grave nas competições internacionais.
Na esteira da Copa, vários estados foram derrubando as restrições locais. A Bahia foi a primeira, em 2014, quando seu estádio de Copa, a Fonte Nova, já tinha uma marca de cerveja como proprietária dos "naming rights". Depois vieram o Rio de Janeiro, Minas Gerais (2015), Pernambuco (2016), Santa Catarina (2018), Ceará e Paraná (2019), entre os estados com mais presença na Série A.
Mas em São Paulo e no Rio Grande do Sul, as flexibilizações, aprovadas nas assembleias legislativas, foram rejeitadas pelos então governadores João Doria (PSDB) e Eduardo Leite (PSDB), em 2019. Na ocasião, eles argumentaram que a legislação estadual seria inconstitucional à medida que contrariaria uma legislação federal, o Estatuto do Torcedor.
Em 2019 mesmo, esse entendimento foi rejeitado no Superior Tribunal Federal (STF), que julgou uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) apresentada pela Procuradoria Geral da República (PGR) sobre a legislação local do Mato Grosso. Oito ministros votaram com o relator, Alexandre de Moraes, que defendeu que o Estatuto do Torcedor fala em permanência com "bebidas proibidas" e que cabe a cada estado dizer, então, quais são as bebidas proibidas. Ele também rejeitou a tese de que a venda de cerveja em estádios ocasionaria aumento de violência.
Em São Paulo, o projeto de lei aprovado na Alesp, e que foi vetado em conjunto por João Doria (ex-governador) e pelo atual governador Rodrigo Garcia (PSDB), então vice, limitava a comercialização a bebidas de até 14% de teor alcoólico, impondo restrições de a venda começar uma hora antes do apito inicial e parar a 15 minutos do fim. Além disso, as cervejas só poderiam ser vendidas em bares e lanchonetes e em copos plásticos de não mais de 500 ml.
Continua havendo, porém, resistência dos grupos mais conservadores, das bancadas evangélicas e da bala — o projeto recebeu parecer contrário na Comissão de Segurança Pública, por exemplo. Na Comissão de Constituição, Justiça e Redação, a relatora Janaina Paschoal o considerou inconstitucional. O veto de Doria nunca foi discutido na Alesp para ser derrubado, mesmo apesar da decisão do STF.
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