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Vaia, braçadeira e cartazes: Fifa perde batalha, e política entra na Copa

Copa do Mundo: torcedores do Irã fazem protesto contra o governo iraniano, que tem fortes represálias contra mulheres.  - reprodução
Copa do Mundo: torcedores do Irã fazem protesto contra o governo iraniano, que tem fortes represálias contra mulheres. Imagem: reprodução

Demétrio Vecchioli, Rodrigo Mattos e Thiago Arantes

Do UOL, em Doha (QAT), Barcelona (ESP) e São Paulo

21/11/2022 18h04

Classificação e Jogos

A Fifa tentou impedir, mas, no segundo dia da Copa, a política chegou aos estádios do Qatar. Desde que o país recebeu o direito de receber o Mundial, a preocupação em evitar qualquer tipo de protesto estava no topo da lista dos organizadores. O "mundo perfeito" de Gianni Infantino e das autoridades qataris durou apenas um dia.

Antes mesmo do apito inicial de Inglaterra x Irã, segunda partida do torneio, as duas equipes protestaram. Na seleção iraniana, os jogadores ficaram em silêncio durante a execução do hino nacional, em sinal de apoio às manifestações contra o regime de Ali Khamenei. Nas arquibancadas do Estádio Khalifa Internacional, torcedores iranianos também participaram do protesto, com vaias ao hino do próprio país. Outros mostraram faixas e cartazes pedindo direitos para as mulheres, com o slogan "Woman Life Freedom" (Mulher, Vida e Liberdade)

protesto ingleses - Alex Pantling - The FA/The FA via Getty Images - Alex Pantling - The FA/The FA via Getty Images
Jogadores da Inglaterra ajoelharam em protesto antes do apito inicial
Imagem: Alex Pantling - The FA/The FA via Getty Images

Os ingleses, por sua vez, estamparam na braçadeira de seu capitão Harry Kane a mensagem "No Discrimination" ("Sem discriminação") — ele era um dos capitães que usaria o objeto com o arco-íris da campanha One Love, mas a Fifa ameaçou punir os jogadores que aderissem ao movimento com um cartão amarelo.

Antes do apito inicial do brasileiro Raphael Claus, os jogadores ingleses se ajoelharam como protesto em favor do coletivo LGBTQIA+; em jogos da Premier League, o campeonato nacional inglês, os jogadores já têm esse hábito, mas com foco no movimento antirracista. Parte da torcida qatari no estádio vaiou a iniciativa.

A braçadeira também se transformou em objeto de protesto na vitória da Holanda sobre o Senegal, por 2 a 0. O zagueiro Virgil Van Dijk, que até horas antes da partida afirmava que apoiaria a campanha One Love com o arco-íris, foi convencido do contrário, mas usou uma peça semelhante à de Harry Kane. A frase, "No Discrimination", era a mesma, porém em cor diferente. No terceiro jogo do dia, o galês Gareth Bale seguiu a tendência.

Vetada entre os capitães, a faixa apareceu no braço da ex-jogadora da seleção feminina da Inglaterra Alex Scott, comentarista da BBC, antes do duelo entre ingleses e iranianos.

O narrador Luis Roberto, da TV Globo, não se conteve diante da situação. No intervalo da transmissão de Holanda e Senegal, ele comentou o assunto. "Os capitães de algumas seleções europeias usariam uma braçadeira com um arco-íris. Mas a Fifa ameaçou as seleções com uma punição esportiva. Há necessidade, dona Fifa? Fala sério!"

Jornalista barrado por camiseta

Nos bastidores do duelo entre Estados Unidos e País de Gales, que fechou a programação do dia, mais um incidente envolvendo manifestações em favor do coletivo LGBTQIA+. O jornalista norte-americano Grant Wahl foi barrado por seguranças na entrada do Estádio Ahmad bin Ali. O motivo: usar uma camisa com uma bola e um arco-íris.

Em um relato sobre o caso, Wahl explicou que ficou detido por 25 minutos, teve seu telefone retirado, e ouviu dos guardas que poderia entrar caso trocasse sua camisa, que tinha uma "mensagem política". Um representante da Fifa foi chamado, liberou a entrada do jornalista e pediu desculpas, segundo o próprio Wahl. De acordo com a entidade, o uso da imagem do arco-íris está liberada por parte dos torcedores.

Os diferentes protestos desta segunda-feira mostram que, ao tentar evitar a mistura entre política e futebol, a Fifa já começou o jogo perdendo. Desde 2010, quando o Qatar ganhou, de forma controversa e com suspeita de fraude, o direito de sediar a Copa do Mundo, mudou de forma significativa a forma como o respeito às minorias é tratado no futebol, especialmente na Europa. Não que a homossexualidade tenha passado a ser naturalizada no futebol, longe disso, mas políticas assertivas passaram a fazer parte da agenda da opinião pública e, por consequência, de patrocinadores, clubes, ligas e jogadores.

grant whal - Reprodução - Reprodução
Jornalista americano usava uma camisa com um arco-íris no Qatar
Imagem: Reprodução

Quando a Uefa criou um grupo de trabalho para estudar as questões relativas aos direitos humanos na Copa do Qatar, foi proposta uma campanha, One Love, como forma de protesto contra as leis que reprimem a população LGBTQIA+ no Qatar. Esperava-se que os capitães das seleções europeias entrassem em campo com uma faixa padronizada, com uma bandeira do arco-íris, mas a ação foi proibida pela Fifa, que ameaçou punir com cartão amarelo quem fizesse isso.

O primeiro a pular fora foi o capitão da França, Hugo Lloris, que disse que dependia da concordância da Fifa e da federação francesa (que é contra). E defendeu o direito dos qataris de serem homofóbicos. "Na França, quando recebemos estrangeiros, queremos que eles respeitem nossas regras e nossa cultura. E farei o mesmo quando for ao Qatar", disse, ainda na França.

Iranianos contra o regime

O posicionamento dos iranianos a favor dos protestos que tomam conta do país e contra o governo local não é novidade. No dia 27 de setembro, o Irã empatou com o Senegal por 1 a 1, na Áustria, em amistoso preparatório para a Copa do Mundo. Antes do início da partida, os jogadores se perfilaram para o hino nacional vestindo casacos pretos, sem mostrar a camisa da seleção ou qualquer identificação com o país. Sardar Azmoun fez o único gol iraniano na partida e não comemorou.

protestos no Irã - SHWAN MOHAMMED/AFP - SHWAN MOHAMMED/AFP
Iranianos do Curdistão queimam hijab em protesto contra a morte de Mahsa Amini, morta após ser presa pela polícia da moral no Irã
Imagem: SHWAN MOHAMMED/AFP


A onda mais recente de protestos no Irã começou em 16 de setembro. Naquele dia, foi anunciada a morte da jovem Mahsa Amini, de 22 anos. Ela estava sob custódia da polícia moral do país, sob alegação de ter usado de forma incorreta o hijab, véu obrigatório para as mulheres iranianas desde a Revolução Islâmica de 1979.

Testemunhas afirmam que Mahsa foi violentamente agredida pelos policiais no momento da prisão. O governo iraniano diz que ela morreu em decorrência de um ataque cardíaco. Nos dias seguintes à morte da jovem, milhares de mulheres iranianas saíram às ruas de cidades de todo o país. Os protestos contra o regime e por mais direitos para as mulheres e outras minorias incluíram a queima pública de véus. O número de vítimas fatais já ultrapassou 320, segundo diferentes agências internacionais de direitos humanos.

Fifa proíbe manifestações políticas

As manifestações desta segunda-feira, sobretudo por parte dos ingleses, podem provocar uma reação da Fifa. A entidade pode colocar em prática o artigo 33 do regulamento da competição, que afirma: "a exibição de mensagem política, religiosa, ou pessoa, ou slogans de qualquer natureza, ou linguagem, ou forma por jogadores e oficiais (árbitros e técnicos) é proibida".

A aplicação deste artigo tem precedente, e nem faz muito tempo. Na Copa do Mundo da Rússia, em 2018, os suíços Granit Xhaka e Xherdan Shaqiri foram multados em 10 mil euros (R$ 55 mil, na cotação atual) por terem celebrado um gol diante da Sérvia fazendo o símbolo de um águia, em referência à bandeira da Albânia.

Os dois jogadores têm origem no Kosovo — país cujo povo é em maioria de origem albanesa. Sérvios e kosovares são povos rivais históricos na região dos Bálcãs; a última guerra entre eles aconteceu entre fevereiro de 1998 e junho de 1999. Nesta Copa do Mundo, o confronto entre sérvios e suíços acontecerá novamente, pois as duas seleções estão no Grupo G, o mesmo do Brasil.