Topo

Herói ou 'amarelão'? Psicólogos argentinos analisam sina de Messi em Copas

Reação de Lionel Messi após o apito final da derrota da Argentina contra a Arábia Saudita - Maddie Meyer - FIFA/FIFA via Getty Images
Reação de Lionel Messi após o apito final da derrota da Argentina contra a Arábia Saudita Imagem: Maddie Meyer - FIFA/FIFA via Getty Images

Colunista do UOL

23/11/2022 06h42

Classificação e Jogos

A Argentina estreou na Copa do Mundo do Qatar praticando seu esporte preferido: a montanha-russa emocional.

Eufórica com a seleção que não perdia desde julho de 2019, a apaixonada torcida vizinha criou um mundo de terror com a derrota de virada ontem (22) para a Arábia Saudita no "começo do fim" de Lionel Messi em Copas.

O astro que joga seu quinto e último Mundial começou bem. Abriu o placar logo aos 10 minutos, mas depois foi caindo de rendimento até deixar a cabeça cair no gramado.

Em um triste filme repetido, digno dos tangos mais amargos do começo do século passado, ele vagou cabisbaixo pelo campo naquele que o jornal "Clarín", o mais lido da Argentina, chamou de "o maior papelão da história da seleção em Copas".

(Para se ter ideia do recuo histórico, a queda ante os árabes deixou para trás até mesmo a goleada por 6 a 1 para a Tchecoslováquia em 1958, quando os jogadores foram recepcionados por torcedores com paus e pedras no Aeroporto de Ezeiza; até mesmo a derrota por 1 a 0 para Camarões em 1990, quando o técnico Carlos Bilardo quis que o avião caísse se fosse eliminado na fase de grupos; a "tristeza não tem fim" não poderia deixar de incluir o 4 a 0 para a Alemanha em 2010, quando o técnico Diego Maradona soltou uma das suas mais célebres frases: "Parece que tomei uma porrada do Muhammad Ali de um lado da cara e do Mike Tyson do outro".)

lio - JUAN MABROMATA/AFP                             - JUAN MABROMATA/AFP
Lionel Messi, da Argentina
Imagem: JUAN MABROMATA/AFP

Do campo ao divã

A caça às bruxas iniciada ainda na manhã portenha teve um nome em comum: Lionel Messi, o capitão desnorteado que definiu a terça-feira argentina com um preocupante "estamos mortos, é um golpe muito duro".

A declaração iniciou uma ciranda com os mais renomados psicólogos argentinos para uma "viagem à mente" de Messi. Quem acompanha as TVs e rádios do país vizinho sabe que tais profissionais são sempre solicitados para explicar as notícias mais agudas. Foi assim, por exemplo, com o atentado à ex-presidente Cristina Kirchner, há dois meses.

Mundialmente conhecido, autor de livros e estrela de peças de teatro, o primeiro a aparecer, até por relevância, foi Gabriel Rolón. "Todos amamos falar de Messi, não?", indagou, no meio da programação vespertina da América TV, uma das maiores audiências de todo o país.

"A idolatria converte alguém em Deus e, a partir daí, se pede para que ele faça tudo. Não é por aí. A relação entre o torcedor e o ídolo é forte e conflitante. Acabam projetando sobre ele a expectativa que dê sentido às nossas vidas, e cada uma das suas derrotas são vividas como tragédias pessoais", definiu.

O psicólogo tirou o drama da derrota argentina, "basta ganhar as próximas", e pediu moderação ao falar de Messi: "Que as pessoas busquem seus próprios sonhos. Vamos agradecer a esse rapaz que, por talento e nobreza, nos deu motivos de sobra para batermos palmas de pé, na vitória e na derrota".

O futebol é um evidente esporte em equipe. E ignorar isso para "cair matando" em Messi não faz sentido algum, segundo outra referência argentina da mente, Bernardo Stamateas.

"Se ganha e se perde em equipe", analisou, em outra TV de enorme audiência, a Telefe. "Há uma grande diferença entre um grupo e uma equipe. É necessária uma sintonia e uma agenda comum para se conseguir um resultado esperado. O esporte é fascinante por isso. As melhores equipes se sobrepõem às melhores figuras. Quem joga coletivamente merece a vitória."

lio - FRANCK FIFE / AFP - FRANCK FIFE / AFP
Messi ao lado da esposa Antonella e dos filhos Ciro, Mateo e Thiago no prêmio Bola de Ouro 2021
Imagem: FRANCK FIFE / AFP

O pai que quer agradar o filho

Outro ponto lembrado na maratona televisiva com os psicólogos foi a pressão que o própio Messi absorve agora da sua família —como revelou, em tom de brincadeira, das cobranças que os filhos agora exercem ao torcer pela seleção.

"Um ideal é um ideal, uma parte humana é uma parte humana", insistia, no C5N, Oscar Mangione, psicólogo com experiência no Boca Juniors e no River Plate.

"Os humanos falham. A estrutura do humano é a falha, a falta. Isso é o que nos faz desejar. Isso é o que nos faz particularmente humanos. Quando alguém se identifica com algo, se identifica com algo completo, que usualmente não poderia falhar nunca, que nunca teria defeito ou problema."

"Quando não se toma a realidade com todos seus aspectos, caímos em situações como esta, de extrema frustração. Messi é um ser humano, que certamente estará buscando novas respostas a partir de agora."

Novas respostas a um velho problema. Muitas imagens foram mostradas do camisa 10 caminhando cabisbaixo, escondendo o rosto ao ouvir o hino e até vomitando em campo.

Como sempre repetem em Buenos Aires, "a queda do Obelisco ao fundo do Rio da Prata só leva 10 segundos".

A metáfora que ilustra como os vizinhos vivem eternamente entre o êxtase e a agonia carrega um certo exagero. Seria mais justo dizer que são só...90 minutos de futebol.

pip - Matthew Ashton - AMA/Getty Images - Matthew Ashton - AMA/Getty Images
Higuaín, durante partida da seleção argentina
Imagem: Matthew Ashton - AMA/Getty Images

Lembra dele?

O tema da psicologia esportiva na Argentina é tão denso que deve absorver até um ex-jogador que sofreu demais pelas críticas recebidas em três Copas disputadas.

Estamos falando do centroavante Gonzalo Higuaín, que jogou as Copas de 2010, 2014 e 2018 e foi detonado ao perder gols importantes. Ele anunciou recentemente sua aposentadoria.

"Vou estudar psicologia esportiva no ano que vem", contou Higuaín ao canal de TV TyC Sports. "Há dez anos, eu respondia 'não, não serve para nada, vou falar com um psicólogo que não conheço, contar minha vida para ele'. Mas no decorrer dos anos meu pensamento mudou. Não acho que seja só importante, como considero que seja fundamental. Hoje, com 34 anos, me parece que é a matéria mais importante para a vida."

Higuaín encerrou com um exemplo cortante ao ver o também atacante Enzo Copetti, do Racing, deixar o campo com uma lesão no joelho, enquanto era xingado pela própria torcida:

"Me doeu na alma. Há momentos em que você precisa ter sensibilidade pelo jogador. Não se dá importância a isso, que repercute demais na cabeça do atleta".

Pátria da psicologia

A Argentina é o país com o maior número de psicólogos por habitantes. São 106 profissionais para cada 100 mil pessoas, segundo a OMS (Organização Mundial de Saúde).

Para evitar o estresse de enfrentar o trânsito, ou até mesmo a falta de tempo, os vizinhos investem forte até mesmo na terapia online desde o começo da pandemia por covid-19, no início de 2020.

Atolados no mais recente colapso econômico do país, os argentinos vivem uma sensação cada vez maior de desesperança. A economia disfuncional provoca estragos não só nas carteiras, como também na cabeça da população.

Uma pesquisa do Departamento de Psicologia Aplicada da Universidade de Buenos Aires (UBA), que diz que mais de 85% dos 1.700 entrevistados acreditam que a atual crise os tornou menos esperançosos para o futuro, com metade deles descrevendo as mudanças como "significativas ou drásticas".

"O ciclo constante de crises enche muitos e muitos consultórios", afirmou Gustavo Gonzalez, diretor do Departamento de Psicologia Aplicada da UBA. "As coisas estão ruins, e de algumas maneiras, piores, em termos de saúde mental."

O UOL News Copa desta quarta-feira (23) analisa a escalação ofensiva de Tite, Marrocos x Croácia, a ressaca argentina, a estreia de favoritas no Mundial, como Alemanha, Bélgica e Espanha, e mais notícias. Confira: