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Streamer e 'sem filtro', Luis Enrique é a alma de Espanha renovada

Luis Enrique durante transmissão na Twitch: treinador aderiu às lives durante a Copa - Reprodução
Luis Enrique durante transmissão na Twitch: treinador aderiu às lives durante a Copa Imagem: Reprodução

Thiago Arantes

Colaboração para o UOL, em Barcelona

23/11/2022 04h00

Classificação e Jogos

Sentado diante de dois monitores, cercado pelos olhares curiosos de seus auxiliares, Luis Enrique Martínez arregalou os olhos quando viu o número: 150 mil pessoas assistiam a sua primeira transmissão ao vivo na Twitch. Com a voz rouca, uma de suas marcas, o técnico da seleção espanhola soltou a pérola. "É muita gente! Ou vocês não têm nada para fazer, o que acho ótimo, ou estão mesmo interessados na seleção".

Nenhuma das opções está errada. O território das lives, as transmissões ao vivo pela internet, pode ainda ser novo para Luis Enrique, 52, mas é um ambiente em que os jovens se sentem à vontade. É um público que, cada vez mais, assiste ao conteúdo de streamers; e que, nos últimos anos, tem se interessado novamente pela seleção espanhola.

Depois de campanhas frustrantes em 2014 e 2018, a campeã mundial de 2010 estreia na Copa do Qatar, nesta quarta-feira, com uma seleção de 20 estreantes e média de idade pouco acima de 26 anos (a quarta menor do torneio). São jovens como Gavi, 18, Pedri, 19, e Ansu Fati, 20, ainda desconhecidos do grande público, e que têm no Mundial a chance de se apresentarem como novas estrelas.

Enquanto isso não acontece, o astro da Espanha é o treinador. Se antes Luis Enrique já tinha o respeito da geração que o viu jogar pelo Real Madrid e pelo Barcelona, além de disputar as Copas de 1994, 1998 e 2002, agora ele conquistou o público da faixa etária de seus comandados.

"Eu tento ler o que vocês escrevem, mas esse chat vai mais rápido que o Nico Williams", disse o novo streamer, ainda nos primeiros minutos da nova aventura, referindo-se ao ponta do Athletic Club. Em uma live com tantos espectadores, a caixa de mensagens chega a mostrar 10 mensagens por segundo, que vão desaparecendo à medida que novas interações aparecem. Para ajudar Luis Enrique em meio à pirotecnia de emojis e frases curtas, funcionários da federação espanhola (RFEF) atuam como moderadores. São eles que selecionam as perguntas.

E, se nos comentários de "tiozão jovem" o técnico já diverte, é nas respostas ao novo público que Luis Enrique dá o seu show. Ali, ele perde totalmente os filtros, comete gafes, revela detalhes de bastidores da seleção e tira de letra todas as provocações. O técnico promete fazer lives durante todo o Mundial, exceto nos dias pré e pós-jogo (além, é claro, dos dias de partidas), sempre por volta das 17h.

luis filha - Reprodução/Instagram - Reprodução/Instagram
Ferran Torres e Sira: Luis Enrique brincou com a relação do atacante com sua filha
Imagem: Reprodução/Instagram

Fofocas, gafes e bastidores

Em uma das transmissões, por exemplo, ele confirmou a fofoca que já se espalhava pela Espanha havia pelo menos seis meses: Ferrán Torres, um dos 26 convocados, está namorando a sua filha, Sira. Um espectador perguntou qual jogador era o representante do treinador em campo. Luis Enrique pensou por alguns segundos, soltou uma risada e respondeu: "Ferrán Torres, claro. Se falar outro, a minha filha me bate". A imprensa espanhola adorou.

O treinador também virou notícia quando disse que a Costa Rica, adversária da estreia, "tem jogadores como Keylor Navas e Campbell e é uma seleção sul-americana, muito forte". A Costa Rica está na América Central. Embora tenha sido uma confusão geográfica comum, a frase repercutiu na mídia costarriquenha; e na espanhola, claro.

Mas nem só de gafes vive o streamer Luis Enrique. Ele também usa as transmissões para dar detalhes sobre o dia a dia dos jogadores e da comissão técnica. Já explicou, por exemplo, como foram escolhidos os números que cada jogador usará na Copa do Mundo. "O mais antigo na seleção escolhe primeiro. Depois, o segundo. Até o mais novato, que fica com a camisa que sobra. Eu nem participo disso".

Apesar da juventude do elenco espanhol, Luis Enrique já disse, mais de uma vez, que quer "jogar sete jogos" na Copa do Mundo; na prática, isso significa chegar pelo menos às semifinais. Mas o objetivo de chegar longe não tira a paixão do treinador pelo evento como um todo. Ele contou que, na concentração, comissão técnica e jogadores assistem a todas as partidas e fazem até um bolão.

"Quando eu era jogador, eu sempre organizava o bolão da Copa. Agora estamos organizando um, também. É legal porque todo mundo assiste aos jogos juntos, ficamos torcendo pelos resultados do Bolão. Na Eurocopa, quem venceu foi o Pablo, da equipe de segurança", disse um Luis Enrique contrariado, um sintoma de quem não gosta de perder nem no Bolão.

Uma estratégia calculada

O momento mais marcante de Luis Enrique em uma Copa do Mundo também já foi assunto. Em 1994, ele foi atingido por uma cotovelada do italiano Mauro Tassotti, nas quartas de final. A imagem do meia com o nariz quebrado e a camiseta cheia de sangue rodou o mundo. E, entre tanta gente, foi inevitável que alguém perguntasse sobre o tema.

"Eu me encontrei com ele um tempo depois. Claro que demorei uns anos. Mas quando nos encontramos ele foi muito carinhoso. Eu tenho orgulho da minha carreira. Também dei muitas cotoveladas, mas por sorte nunca quebrei o nariz de ninguém. Mas isso é passado. Um abraço para o Tassotti", disse, com um sorriso no rosto.

luis sangue - Arquivo/EFE - Arquivo/EFE
Luis Enrique sai de campo indignado com agressão de Tassotti em partida que a Espanha foi eliminada da Copa
Imagem: Arquivo/EFE

A espontaneidade de Luis Enrique em frente à câmera surpreendeu desde o primeiro dia. Houve quem pensasse que ele estava alterado. "Estão me perguntando se eu estou bêbado. Não estou! Eu sou assim mesmo!"

Luis Enrique não está bêbado. Muito pelo contrário, o movimento é planejado. Cada nova transmissão é uma coletânea de manchetes, reportagens, tweets e cortes distribuídos nas mais diversas plataformas e redes sociais. Fala-se mais do que nunca do treinador espanhol. E cada vez menos de seus jogadores.

A jovem seleção espanhola terá muito mais que os 150 mil espectadores de Luis Enrique na Copa do Mundo do Qatar. Mas a pressão sobre os jogadores é bem menor do que se poderia imaginar. Eles sabem que, se tudo der errado, o técnico vai tomar a frente e encarar as perguntas. Sejam da imprensa ou do incessante chat da Twitch.