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'Pedi pra encher mais a xícara de café': as curiosas gafes no Qatar

Marjorie Iscaife coleciona histórias para contar sobre momentos de choque cultural no Qatar - Arquivo pessoal
Marjorie Iscaife coleciona histórias para contar sobre momentos de choque cultural no Qatar Imagem: Arquivo pessoal

Camila Corsini

Do UOL, em São Paulo

27/11/2022 04h00

Classificação e Jogos

Morar no Qatar, depois de uma vida inteira no Brasil, é uma experiência de descobertas. As diferenças culturais entre o país sede da Copa do Mundo e o Ocidente são tantas — das roupas às comidas — que quem se aventura no Qatar comete, no início, uma gafe atrás da outra. Nada que o tempo e um pouco de paciência dos moradores locais não resolvam.

Foi o que aconteceu com brasileiros que se mudaram para o emirado. Eles relatam comportamentos inapropriados, como a forma de usar as mãos ou comer. A boa notícia é que aprenderam logo os códigos de conduta do Qatar e garantem: os moradores de lá são tolerantes com quem ainda está descobrindo as regras, principalmente quando são estrangeiros que acabaram de chegar ao país.

Localizado no Oriente Médio e banhado pelo Golfo Pérsico, o Qatar é governado por um emir, definição para monarca adotada em muitas regiões muçulmanas. O islamismo é a religião predominante entre os qatarianos, também chamados qatarenses ou qataris. O país ganhou a atenção do mundo todo por sediar a Copa 2022.

Por lá, contatos íntimos como abraços e beijos em locais públicos, como nas ruas — tão comuns no Brasil — não são permitidos. E há até regras para o uso das mãos.

A primeira gafe de Bruna Bardavid, 35, veio assim que ela tomou o primeiro gole de café no país. Bruna, que hoje trabalha com turismo no país, fez um curso de guia logo que chegou.

"No dia de conhecer a hospitalidade qatari, a gente se sentou no chão e tinha um rapaz servindo um pouquinho de café árabe. Quando chegou a minha vez, pedi para ele completar a xícara."

O que ela não sabia é que há uma etiqueta para o café servido às visitas. "Ele ficou sem graça e encheu até a metade", lembra. Ponto de interrogação no ar.

Café - Karim JAAFAR / AFP - Karim JAAFAR / AFP
Homem serve café em Al-Wakrah, sul da capital Doha, no Qatar; bebida é símbolo de hospitalidade
Imagem: Karim JAAFAR / AFP

"Quando eles começaram a falar, explicaram sobre o costume de servir café de pouco em pouco para que o hóspede sempre deguste um café quentinho. Encher até a boca significa que você quer que ele tome rápido e vá embora", conta ela.

Diferentemente do que ocorre no Brasil, no Qatar também não é educado dizer "não, obrigado" quando alguém oferece uma xícara de café.

E, sem perceber, na mesma ocasião ela também cometeu outra "irregularidade". Como estava com o celular na mão direita, filmando, pegou a xícara com a mão esquerda.

"Eu também não sabia que tudo que a gente entrega e recebe deve ser feito com a mão direita, já que a esquerda é considerada a 'mão da higiene'"

Hoje, Bruna faz questão de explicar esses detalhes aos turistas que estão conhecendo o país.

"Sempre dou essa explicação, conto o ritual de servir um pouquinho de café. Muita gente não conhece. São detalhes que nem passam na nossa cabeça", explica ela, que mora há seis anos no país.

Mulheres em Doha - Andrej ISAKOVIC / AFP - Andrej ISAKOVIC / AFP
Mulheres caminham em praia de Doha; há vestimentas adequadas para cada espaço
Imagem: Andrej ISAKOVIC / AFP

Não é tudo a mesma coisa

Embora esteja há pouco mais de dois meses no Qatar, a estudante Marjorie Iscaife, 25, já coleciona histórias para contar sobre momentos de choque cultural.

Antes de ir ao Qatar para morar, ela já tinha visitado outros países da região, como Egito, Jordânia e Emirados Árabes Unidos.

"Achei que já tinha uma boa noção de como era a cultura árabe e a religião, mas quando cheguei aqui notei que há uma diferença muito grande de país para país — mesmo dentro do mundo árabe", diz ela.

"O choque foi maior do que eu imaginava. O Golfo é muito mais tradicional."

Sala de oração "só para mulheres" em shopping no Qatar - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
Sala de oração "só para mulheres" em shopping no Qatar
Imagem: Arquivo Pessoal

Para ela, o maior choque cultural foi em relação à divisão entre homens e mulheres em vários ambientes. Em seu primeiro dia no Qatar, ela entrou em um elevador em que um homem estava. Ao cumprimentá-lo, ele saiu.

"Íamos para o mesmo piso e não entendi aquilo, me senti mal e achei estranho. Pensei que tinha sido rude com ele. Depois, me explicaram que as mulheres daqui não tem essa tolerância de ficar no mesmo ambiente com um homem. Ele saiu por respeito a mim", lembra.

Ela, que mora em uma universidade qatari, conta que o ambiente acadêmico é mais rígido do que o das ruas.

"Aqui [na universidade], a separação entre homens e mulheres e os códigos de vestimenta são mais rígidos porque são feitos pensando nas famílias tradicionais. Não tem área comum para homens e mulheres. Já nas universidades estrangeiras, e até mesmo nas ruas, as normas são mais flexíveis."

Uma das situações mais desconcertantes vividas pela jovem foi em uma academia, que ficava em um prédio exclusivo para mulheres.

"Como existem essas divisões, lá elas podem tirar os véus e ficar mais à vontade, já que não tem homem nenhum. Como não vi nenhum aviso, coloquei uma legging [tipo de calça justa] e uma regata. Logo veio uma segurança falando que eu não podia ficar ali por causa da minha roupa", conta.

"Quando disse que vi pessoas de shorts, a segurança falou que só poderia usá-lo para determinadas atividades. Tive de ir embora na hora, ela não me deixou sequer finalizar o que eu estava fazendo."

Em geral, Marjorie afirma que os qataris não são rudes e explicam as regras com paciência, principalmente quando percebem que estão lidando com estrangeiros.

Recall de bombom

Apesar de morar no Qatar há oito meses, a maior gafe enfrentada por Daniel Ferreira, que trabalha com petróleo no Oriente Médio, aconteceu quando ele morava nos Emirados Árabes, país vizinho.

"Era meu segundo ano em terras árabes e eu decidi comprar alguns presentes para meus clientes quando fui ao Brasil no Natal. Voltei feliz com umas 10, 15 caixas de bombom e trufas e distribuí", lembra.

"Depois de umas duas semanas, um deles me pediu para ler os ingredientes na caixa. Na hora, eu já fiquei roxo. Ele percebeu que eu fiquei gago."

O susto do Daniel foi porque, entre as muitas letras pequenas, ele descobriu que os chocolates levavam álcool na composição. De acordo com uma leitura mais literal do Alcorão, o livro sagrado do Islã, esse é um ingrediente proibido entre muçulmanos. No Qatar, inclusive, a venda de bebidas alcoólicas foi proibida no interior e entorno dos estádios.

"Pedi desculpas e ele me deu os chocolates de volta. Tive de ir aos outros clientes, contar o que aconteceu. Um recall total. Uma cliente ficou mais incomodada e fez uma cara não muito boa, mas entendeu. Os outros levaram numa boa."

A situação levou os amigos até a fazer uma piada: "If I don't know, it's not haram, it's halal". Algo como: "Se eu não sabia, não era pecado."

O termo halal é usado para indicar tudo o que é permitido de acordo com o Islã. Já haram é o contrário, e representa tudo aquilo que não é visto como aceitável pela religião.

Veja curiosidades sobre o Qatar

  • Religião. O Qatar tem como religião oficial o islamismo (sua maior parte é sunita). A principal fonte de legislação é o chamado charia, um sistema legal que mistura direito civil e direito islâmico. Em alguns tribunais, por exemplo, o testemunho de uma mulher pode valer até metade do testemunho de um homem.
  • Temperatura. Localizado em região desértica, o Qatar é um dos países mais quentes do mundo em seu verão. Por lá costuma-se registrar sempre temperaturas acima dos 30°C, inclusive durante as noites e madrugadas. No ápice do calor, é comum fazer entre 40°C e 50°C, com a sensação térmica podendo chegar na casa dos 60ºC.
  • Fim de semana? No Qatar, o dia de recesso é a sexta-feira. O domingo é considerado o primeiro dia da semana e o sábado é igual na maior parte do mundo. As vestimentas vão de acordo com a doutrina seguida. Não é recomendado sair com ombros e os joelhos à mostra em locais públicos, e isso vale para os turistas no Mundial.