Jogo do Brasil em clube de tiro 'família' tem crianças e nenhuma arma usada
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Um bebê de colo se aconchega, tranquilo e sorridente, nos braços da mãe. Outras crianças com não mais de sete ou oito anos de idade jogam videogame em um confortável espaço decorado para elas. A garçonete anota os pedidos dos adultos. Ela usa uma camiseta com a frase "Luta & Pátria & Liberdade & Você".
Assim é o clima no clube de tiro MG42, na Zona Leste de São Paulo, na hora do jogo entre Brasil e Camarões na última sexta-feira (2). Aberto há apenas dois meses, já tem cerca de 100 sócios. É parte do fenômeno da explosão desse tipo de estabelecimento durante o governo Bolsonaro: quase metade dos cerca de 2061 clubes de tiro do Brasil foi inaugurada entre janeiro de 2019 e maio deste ano. Na média, quase um clube de tiro novo por dia.
A tendência acompanha o crescimento vertiginoso de outros números, como o de armas registradas por caçadores, atiradores e colecionadores (CACs), que subiu 287% entre dezembro de 2018 e julho de 2022.
"Ficamos sabendo que iam disponibilizar o espaço para assistirmos ao jogo e decidimos vir", diz Igor Alexandre de Oliveira. Ele acaba de virar sócio do MG42 e fará o treinamento para tirar o CR (certificado de registro) de CAC. Ele assiste à partida acompanhado da esposa e de uma das filhas, de 9 meses de idade.
Filho de um policial civil, ele já praticava tiro esporadicamente. "Acho que alivia o estresse e melhora a concentração, além de trazer foco e disciplina", explica Igor sobre o hobby. Ele é um rapaz de 26 anos, advogado, atencioso e de fala tranquila. Sua família ocupa uma das mesas da área social do clube, onde está a TV que transmite o jogo.
O espaço no subsolo do clube está longe do estande de tiro, que fica no último andar. É um espaço agradável e espaçoso com bar, cozinha, mesa de sinuca e a TV com videogame para as crianças se distraírem. Um aviso na parede alerta que não é permitido praticar tiro depois de consumir bebidas alcoólicas.
"Eu quero me tornar policial federal, mas espero que nunca precise usar minha arma fora de um estande de tiro", diz Igor. "Concordo com as restrições em relação ao porte de armas, que é diferente da posse", explica o advogado. Ele acredita que armar a população pode resultar, por exemplo, nos massacres em escolas. Mas, no caso da posse, que é a permissão para ter a arma em casa, uma arma pode ajudar, segundo ele. "Se a sua residência é perto da escola, você ouve os disparos e é um praticante (de tiro), às vezes você consegue evitar mortes."
Tanto Igor quanto outros entrevistados pela reportagem refutam a tese de que o aumento dos clubes de tiros e CACs esteja diretamente ligado às medidas do atual governo. Todos sugerem que se trata de um fenômeno que hoje muitos chamariam de "orgânico".
É cada vez mais comum o relato de assassinatos cometidos por CACs. Um dos mais recentes aconteceu justamente na zona leste paulistana: um homem com registro CAC matou a tiros a ex-mulher e o filho caçula em frente a uma escola. Teve a prisão preventiva decretada pela Justiça em setembro.
Outro problema tem sido o desvio de armas e munições por CACs para o crime organizado. Uma rápida busca por esses termos no Google revela uma abundância de casos.
No clube, porém, a conversa sempre se dá de forma respeitosa e ponderada. No MG42, ao menos durante a partida, não há defensores ferrenhos ou histéricos das armas. O slogan do clube lembra o de muitos bolsonaristas, mas tampouco há espaço para debates políticos exaltados.
"Não é qualquer um que vira CAC. Eu, por exemplo, corro o risco de não passar (nos testes)", diz Igor. Ele defende que os casos dos recentes crimes envolvendo atiradores certificados são pontuais e que nenhuma prova consegue impedir que eventuais malucos passem nos testes. O advogado gosta de atirar com uma arma 556, fuzil com o mesmo calibre da famosa AR-15 norte-americana.
Mesmo com o momento tumultuado pelo qual passa o país, a reportagem não escutou uma única menção ao atual presidente, e ao futuro presidente Lula, durante as entrevistas. "Tenho alguma preocupação", diz Igor sobre eventuais mudanças na legislação quando o novo governo começar, "mas não tanto, porque já estou tirando meu CR. Acho que quem quiser tirar lá na frente talvez encontre alguma barreira restritiva".
Igor parece não esquentar a cabeça com seu futuro como CAC do mesmo modo que ninguém na área social perde tempo se irritando com a monótona partida da seleção brasileira contra Camarões. Estão todos mais preocupados em confraternizar e degustar os petiscos que vêm da cozinha. Em alguns momentos, não há ninguém olhando para a TV.
"Vim assistir ao jogo aqui porque gosto de futebol e gosto de atirar", diz Guilherme Mendes. Ele está no clube como visitante, mas pretende se filiar ainda hoje. "Meu pai tem uma fazenda, então lá eu sempre atiro de forma casual. Também já pratiquei tiros em outros clubes e gostei", explica.
Guilherme é médico intensivista no hospital Santa Marcelina, um dos mais importantes da zona leste paulistana. Diz que gosta de armas "exóticas" como o fuzil AK-47. Por causa de seu trabalho, está acostumado a lidar com pessoas baleadas todos os dias. Por isso, sua opinião sobre CACs é mais conservadora, por exemplo, que a de Igor.
"Acho que deveria haver uma avaliação psicológica mais adequada. Quem quer ser atirador deveria passar por um crivo maior", diz o médico. "Não é para qualquer um ter uma arma. A gente sabe que, se o cara não tiver o psicológico adequado, pode fazer uma atrocidade. Vejo pessoas passando (nos testes para se tornar CAC) de uma forma muito simplista."
O jogo termina e nem parece que a reportagem está acompanhando uma partida de Copa do Mundo em um clube de tiro. Fora um lamento aqui e ali, ninguém parece se importar muito com o gol de Aboubakar no final. Tampouco há tiros no local: o proprietário resolveu priorizar o atendimento aos clientes que foram confraternizar e não abriu as seis baias do estande de tiro.
O dono do clube, ao lado de sua mulher, é Marcos Gomes. De início, ele fica desconfiado com a presença da reportagem porque não foi informado a respeito dela. Mas logo a leva por um tour pelo clube e se mostra simpático e prestativo.
O espaço onde está o estande de tiro é acessado por meio de duas portas e uma escada com revestimento acústico branco. A impressão é a de que alguém cobriu as paredes com chantily. É tudo muito novo, asséptico e bem organizado.
"Aqui, temos desde armas de calibre menores, como 22, até maiores, como o 45", explica Marcos, colocando uma bala calibre 22 sobre a mesa. "Vem crescendo o número de pessoas que querem ser atiradoras. Mas não sabemos como será o futuro", diz Marcos. No entanto, ele se diz preparado para eventuais mudanças.
"Tem pessoas que olham para o lado ruim. Eu olho pelo lado bom. Quanto mais burocracia tivermos para sermos corretos, menos clubes teremos. E isso é melhor pra mim", acredita Marcos. "Se vierem legislações mais severas para alguém ser CAC, vamos cumpri-las. Nesse esporte não tem ´reset`. Não dá para você atirar e depois dizer que se arrependeu."
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