Quantos trabalhadores morreram nas obras para a Copa no Qatar? Ninguém sabe
Classificação e Jogos
Entre 2010 e 2020, 6.500 trabalhadores imigrantes, especialmente da Índia e de seus vizinhos, como Nepal, Bangladesh e Sri Lanka, morreram no Qatar. No período, o país fazia as obras de infraestrutura necessárias para receber a Copa do Mundo.
Em fevereiro de 2021, o jornal The Guardian, um dos mais respeitados do mundo, ligou essas mortes ao evento de futebol. O objetivo era ter um número para medir algo que preocupa a comunidade internacional: os abusos e negligências do Qatar com os imigrantes. Mas, desses mortos, quantos tinham ligação direta com o Mundial?
A resposta é que ninguém sabe. O próprio órgão de Planejamento e Estatística do Qatar apresentou números ainda maiores de imigrantes mortos no país entre 2010, ano da nomeação do país para ser sede da Copa, e 2020: 15.021 pessoas. E alegou que a taxa condiz com a mortalidade normal de uma parcela da população do tamanho da dos imigrantes do Qatar.
Já com a Copa do Mundo em andamento, o Secretário-geral do Comitê Supremo de Entregas e Legado da Copa do Mundo, Hassan Al Thawadi, disse em entrevista a uma TV inglesa que estimava que entre 400 e 500 trabalhadores imigrantes morreram durante as construções para o Mundial e que, especificamente nos projetos de estádios, seriam três óbitos diretos e 37 mortes não relacionadas ao trabalho.
Assim que as frases começaram a repercutir, o comitê emitiu uma nota para retificar a frase do dirigente. As 40 mortes em obras dos estádios foram confirmadas e as "citações separadas sobre números [de óbitos] se referem a estatísticas cobrindo o período entre 2014 e 2020 para todas as mortes relacionadas ao trabalho (414) no Qatar, cobrindo todos os setores e nacionalidades".
O professor de Relações Internacionais José Antonio Lima, das Faculdades Integradas Rio Branco, é um dos que questiona essa associação direta entre os números de mortos e as obras da Copa do Mundo, justamente por não haver dados sobre a ocupação ou o lugar onde essas pessoas trabalhavam. Mesmo os dados oficiais apresentados não revelam se os mortos trabalhavam diretamente com o evento. "Não há dados sobre a ocupação dessas pessoas, nem do lugar que elas trabalhavam. Não tem como associar diretamente às obras", ele afirma.
Os números acabam deslegitimando uma problemática que é, sim, legítima".
José Antonio Lima, professor de relações internacionais
Mortes no alojamento, no estádio, dentro de caminhão
A lei Trabalhista do Qatar concede às famílias dos trabalhadores mortos o direito a indenização em caso de morte "em razão do trabalho". Mas a lista de "doenças ocupacionais" não inclui óbitos resultantes do estresse térmico, menos ainda se houver a descrição de "causas naturais" no atestado de óbito. E essa é uma questão importante no Qatar.
O país da Copa tem clima desértico e as temperaturas são altíssimas entre junho e agosto —chegando com frequência aos 50º C. Para mitigar os riscos à saúde, a legislação proíbe, desde 2007, o trabalho ao ar livre entre as 11 e 13 horas, mas só durante parte do verão. No ano passado, a janela de proibição ganhou 2 horas por dia e foi estendida por mais quatro semanas.
A Anistia Internacional aponta que o estresse térmico matou trabalhadores no país. Um relatório divulgado em 2021 citou casos como o do estucador Mohammad Kaochar, encontrado morto em sua cama; do segurança Yam Bahadur, que morreu repentinamente no trabalho, do operário Suman Miah, que desmaiou e morreu no estádio que trabalhava, do motorista de caminhão Manjur Kha Pathan, morto dentro da cabine do veículo que estava com o ar condicionado quebrado, como exemplos. Em todos os casos, os óbitos foram registrados como "causas naturais" ou "parada cardíaca", sem documentar uma relação com as jornadas de trabalho.
O governo se defende afirmando que "dos milhões de residentes da Índia, Sri Lanka, Bangladesh e Nepal que viveram no Catar de 2011 a 2019, uma porcentagem muito pequena morreu". O governo qatari diz ainda que a taxa de mortalidade está dentro da faixa esperada para tamanho da população.
O legado da Copa: ataque ao sistema kafala
O grande vilão das relações trabalhistas no Qatar é o sistema de kafala, considerado uma forma de escravidão moderna e que, até a Copa do Mundo, era amplamente empregado no Qatar. Nele, trabalhadores só entram no país com convite de um empregador e só podem mudar de trabalho com autorização. Isso gera uma série de questões, partindo de taxas de recrutamento, condições ruins de trabalho, salários baixos ou pagos em atraso e impossibilidade de pedido de demissão.
Relatórios da ONG Human Rights Watch a que a reportagem teve acesso descrevem trabalhadores dormindo em alojamentos com oito ou nove pessoas em quartos com espaços adequados para a metade disso. Esse profissionais recebem promessas muitas vezes mentirosas sobre valores de salários e pagamentos atrasados, não podem deixar o canteiro de obra, sair do Qatar ou mudar de emprego. Além disso, precisaram pagar taxas de recrutamento como se comprassem um trabalho.
A Anistia Internacional, também em relatório, citou entrevistas com trabalhadores de Nepal, Índia e Bangladesh que pagaram taxas que variaram entre 500 e 4300 dólares por um trabalho no Qatar. Recrutadores ouvidos pela Human Rights afirmam que as taxas variam por setor da economia e por país de origem. Quanto mais braçal for o trabalho, maior a taxa. Para pagar pelo recrutamento, muitos passam a trabalhar em situação de servidão por dívidas.
O governo do Qatar informa que o sistema kafala está em abolição no país. A defesa é que mais de 240 mil trabalhadores mudaram de emprego desde setembro de 2020 e 96% dos empregados no país estão protegidos de abusos salariais. Segundo o Qatar, desde a abolição da exigência de autorização feita por empregadores, centenas de milhares de imigrantes deixaram o país. O governo também diz que segue fiscalizando obras e alojamentos, que aplicou mais de 13 mil multas e que empresas que infligiram as leis foram proibidas de operar no país.
A Human Rights Watch analisa que essas reformas foram restritas, tardias e apresentam lacunas. A entidade, que atua na promoção de direitos humanos em todo o mundo, diz que trabalhadores imigrantes e suas famílias ainda sofrem violações e danos diretamente associados à infraestrutura da Copa. Um caso citado é do filho de um trabalhador migrante de Bangladesh que morreu no Qatar depois de morar lá por mais de 20 anos. Ele disse que sua família recebeu 371 dólares para o enterro e mais 3.181 dólares como indenização, pagos pelo governo de Bangladesh. "Não recebemos nada do governo do Qatar", ele disse para a Human Rights Watch.
Para o professor José Antônio Lima, as mudanças são positivas, ainda que lentas. Porém, não são suficientes para se compreender como ideais. "À julgar pelo que a gente viu em outros grandes eventos esportivos, inclusive aqui no Brasil, há redução brusca do interesse pela situação das populações vulneráveis que são afetadas pela realização dos torneios. Não vejo uma mobilização pra que haja uma melhoria geral nas condições desses imigrantes, não apenas no Qatar, mas em outros países da região", afirma.
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