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Primeira árbitra brasileira enfrentou CBD e recorreu a ditador para apitar

A ex-árbitra Léa Campos, pioneira nos campos de futebol - Reprodução
A ex-árbitra Léa Campos, pioneira nos campos de futebol Imagem: Reprodução

Do UOL, em São Paulo

08/12/2022 04h00

Classificação e Jogos

Léa Campos estava em sua casa, em Nova York, quando pela primeira vez na história um trio de arbitragem feminino entrou em campo numa Copa do Mundo. A francesa Stéphanie Frappart, a mexicana Karen Diaz Medina e a brasileira Neuza Back apitaram o confronto entre Costa Rica e Alemanha na última semana, num feito histórico para o futebol. Para Léa, hoje com 77 anos, é muito mais do que isso.

A história de Léa Campos inspirou um curta-metragem. Ela foi a primeira mulher a ser árbitra no Brasil, ainda nos anos 1960, sob protestos e adversidades infinitas. Com exclusividade ao UOL, ela relembra que teve de enfrentar o presidente da então CBD (Confederação Brasileira de Desportos) João Havelange, que se recusou a entregar seu diploma depois que terminou o curso de arbitragem.

A recusa veio depois de um grupo de mulheres pertencentes à organização paulista "Tradição, Família e Propriedade" criarem um abaixo-assinado contra a atuação de Léa no futebol brasileiro. O documento foi enviado a Havelange, e o presidente da entidade máxima do futebol brasileiro acatou o pedido. Léa estava apta, mas não podia apitar por ser mulher. "Dirigentes me perguntavam como eu faria quando estivesse menstruada", conta. "Puta merda, essa mulher não desiste nunca", teria dito Havelange sobre a insistência dela.

Léa havia recebido um convite para apitar o primeiro Mundial feminino da história, que aconteceu no México, em 1971. O convite veio para que ela representasse o Brasil no torneio, uma vez que o país ainda não tinha futebol feminino. "Só que eu não podia ir porque eu não tinha uma prova de que era árbitra. A prova seria meu diploma. Tive de recorrer ao presidente [e ditador] Emílio Médici para me ajudar na questão", relembra.

Médici cumpriria agenda em Belo Horizonte, onde Léa morava, e a árbitra solicitou uma audiência. Foram 26 segundos para que ele escrevesse, a próprio punho, uma carta para Havelange exigindo que Léa fosse liberada para apitar no México. Ao entregar a carta ao dirigente, Havelange adiantou a entrevista coletiva que concederia naquele dia e se vangloriou do feito. Disse que, em sua gestão, "levaria ao mundo a primeira mulher árbitra de futebol profissional".

Léa viajou com o diploma na mão, mas não pôde apitar. Apesar de escalada para o jogo entre Itália e Argentina, sofreu com a altitude e seu nariz não parou de sangrar até o momento de a partida começar. "Me levaram para Acapulco e quando me restabeleci, voltei ao Brasil", diz.

Naquela época não existia nenhum movimento para nos ajudar neste sentido, por isso tive que lutar sozinha contra tudo e contra todos para conseguir quebrar o tabu.

Lea campos - Facebook - Facebook
Lea Campos
Imagem: Facebook

Interesse repentino

A infância de Léa foi cercada de carinho. Foi filha única até os oito anos, quando nasceram, então, seus dois irmãos. O pai sempre foi um incentivador — sempre que podia, levava a filha para pescar, jogar bolinha de gude e a ensinava a empinar pipas. Depois de muito Léa insistir, o pai fez uma bola de trapos para que ela pudesse jogar com os meninos da escola. "Se não me deixassem jogar, eu ameaçava levar a bola, porque era minha", conta.

As idas ao estádio começaram em 1965, para assistir aos jogos do Cruzeiro — seu time amado — junto de seu namorado. "Não entendia nada de futebol. Só sabia que tinha sido gol porque o número no placar mudava", conta. Então, Léa passava o jogo todo perturbando o companheiro com as mil perguntas que rodeavam sua cabeça.

"Meu namorado trabalhava em frente à Radio Itatiaia e, comentando o que acontecia quando íamos ao estádio, alguém disse a ele que estava aberto o curso para árbitros. Se eu topasse fazer, quem sabe eu o deixasse tranquilo para assistir aos jogos. E assim foi. Ele me matriculou e fiz o curso na Escola de Árbitros da Federação Mineira de Futebol."

Mas o que era para ser só um apanhado de conhecimentos despertou em Léa uma paixão imensa. Ela não queria só entender de futebol. Queria atuar. Da família, teve todo o apoio possível -- mas ninguém acreditava que ela fosse bancar todas as adversidades de ser uma mulher querendo apitar. Ainda mais nos anos 1960. Ainda mais num ambiente machista.

Depois de brigar um monte e de chegar até ao presidente do país, Léa conseguiu o tão sonhado diploma. Seu primeiro jogo, no Mineirão, foi "mais uma festa que um jogo", só para que ela recebesse seu diploma.

Lea campos - Museu do Futebol - Museu do Futebol
Imagem: Museu do Futebol

Missão cumprida? Ainda não

Apesar da emoção de ver um trio de arbitragem feminino numa Copa, Léa não sente que sua missão como pioneira está cumprida: "Existe ainda muito machismo no meio". Ainda assim, se sente realizada por ver que sua luta não foi em vão. "Abri uma porta para muitas meninas, mas quero ter a oportunidade de ver trios femininos participando mais, sem o alarde da novidade".

O curso é o mesmo para ambos os sexos, os testes físicos são os mesmos, então não há motivo para surpresas [em relação ao desempenho das árbitras]. As meninas estão aptas e sabem da responsabilidade de cada uma.

Léa se emociona quando fala da nova geração de árbitras brasileiras conquistando um espaço cada vez maior. As vê como guerreiras que, antes, não tinham coragem de lutar. "Ainda hoje vejo que elas mesmo se restringem bastante, preferem ser assistentes que árbitras, por quê?", questiona.

"O mundo é de quem acredita em si e não tem medo de enfrentar o preconceito, que vai existir sempre. Minha meta sempre foi não deixar que o machismo me ofuscasse e meu slogan será sempre: 'não joguem a toalha antes de subir no ringue. Os fortes sempre triunfam'. Temos que matar o covarde que todos temos dentro de nós para sermos os vencedores queremos ser".