Rastro de dor e memórias: A Copa de quem perdeu alguém para a covid-19
Classificação e Jogos
Camisas que traziam sorte, bandeiras desbotadas, fotos e vídeos de quando estavam por aqui cornetando jogadores, apostando em bolões, torcendo e abraçando os filhos na hora do gol. Para os parentes e amigos das quase 700 mil vítimas da covid-19 no Brasil, isso é tudo o que resta delas nesta Copa do Mundo.
Depois de seis edições ao lado do marido, Simone Bombardi precisa redescobrir o que significa uma Copa do Mundo sem Frank Sileno da Silva. Fã de futebol, torcedor do Flamengo e do Moto Clube de São Luís (MA), ele morreu de covid-19, aos 51 anos, em março do ano passado.
"Mesmo trabalhando como gerente, o Frank sempre saía do serviço mais cedo em dias de jogos do Brasil e corria pra casa para assistir", lembra Simone (47 anos).
"Estávamos sempre com amigos esperando. Com petiscos, cornetas, bandeirinhas. Todo mundo vestido pra Copa e o Frank sempre com a camisa dele."
Frank fazia questão de ter a casa decorada para a Copa do Mundo. Assistir aos jogos sem que o ambiente estivesse a caráter lhe pareceria um insulto. Impensável também era não estar trajado com sua camisa da sorte, seu amuleto. Geralmente, escolhia um reggae ou o hino do Brasil para comemorar as vitórias.
Dos primeiros sintomas à internação na UTI em São Luís, foi tudo muito rápido. "Ele tratou em casa por uma semana e meia. Mas foi piorando e quando chegou para internar a saturação de oxigênio já estava em 80%", conta Simone.
A filha de 19 anos do casal também foi para a UTI no dia seguinte. Estava com 50% do pulmão comprometido pela infecção. Simone conseguiu que os dois ficassem em camas lado a lado no hospital. A jovem saiu da UTI depois de dois dias. Frank ficou internado por 45 dias até falecer.
Simone guarda memórias do marido em momentos marcantes da Copa do Mundo. Os títulos, a derrota na final de 1998 para a França e a de 7 a 1 para a Alemanha em 2014. "Em 98, lembro que ele ficou muito puto e decepcionado. Já o 7 a 1 o deixou indignado. Queria chutar tudo. O futebol estava no sangue dele", diz Simone.
Hoje, ela mora com as filhas (tem outra de 10 anos) em Jundiaí, no interior de São Paulo. Vai acompanhar a Copa do Mundo do Qatar, embora ainda não saiba exatamente o que isso significa com a ausência de Frank. "Querendo ou não, ainda lembramos de tudo o que aconteceu. Não é fácil. Ainda mais para quem assistiu a tudo de perto como eu", diz Simone.
As bandeirinhas de Douglas
Apesar de jovem, Douglas Aparecido dos Santos mantinha uma certa aura de torcedor de antigamente. Do tipo que pintava o rosto e a rua com as cores do Brasil e batucava em um balde durante a partida. Em maio de 2020, ele tratava de um câncer no pâncreas quando pegou covid-19. Aos 31 anos, morreu dois dias depois de ser internado.
"Como palmeirense, ele sofria aqui em casa porque todo mundo é corintiano. O Palmeiras, para ele, era tudo", conta Antonia Aparecida Isidoro, 54 anos, mãe de Douglas. A família mora na Zona Leste paulistana. "Na Copa do Mundo, ele enfeitava tudo. Punha bandeirinhas na sala. Gostava muito", lembra Antonia.
Ela se recorda de quando a sala de casa ficou parecendo um carro alegórico de tanto que o filho a enfeitou para os jogos do Brasil. "Como perdi o interesse na Copa depois um tempo, eu gostava de ficar zoando ele, dizendo que o Brasil ia perder."
Douglas acordava de madrugada para assistir aos jogos do Brasil em 2002, quando tinha apenas 10 anos de idade. Foi para a rua comemorar o penta com os amigos do bairro. Se mantinha firme e confiante na seleção até quando fosse possível.
"Não cornetava. Podia estar perdendo que ele sempre dizia que o problema estava com o time adversário", explica Antonia. A resiliência do filho se manteve até depois do 7 a 1 para a Alemanha. Em vez de esbravejar contra Felipão e companhia, ele se retirou para o quarto. Lá ficou, quieto.
Copa na estrada
Raul Pazete nem sempre podia acompanhar a Copa do Mundo ao lado da família. Na verdade, em quase todas estava na estrada, dirigindo e eventualmente parando para ver os jogos em restaurantes de beira de estrada em localidades remotas, ao lado de seus colegas caminhoneiros e desconhecidos. Em 2010, um rapaz bateu na traseira de seu caminhão no dia de uma partida do Brasil. O carro pegou fogo e o homem morreu.
Mesmo assim, Mara Lúcia Pazete, 56 anos, associa a Copa do Mundo ao marido vítima da covid-19. Foram casados por 19 anos. "Para ele, o trabalho vinha em primeiro lugar. Mas ele dizia: 'olha, eu posso estar fazendo o que for, paro para assistir futebol'".
Raul gostava de assistir aos jogos ao lado da filha, hoje com 19 anos. Eram muito próximos. Sempre que possível, colocava a TV na frente da casa em Cascavel (PR), a adornava com a bandeira do Brasil e fazia um churrasco durante o jogo.
"Nosso caminhão também tinha bandeirinha do Brasil", lembra Mara. "Ele era um homem bem calmo, mas xingava (quando se irritava com o desempenho do time). No geral, respeitava todos os jogadores do Brasil. Menos o Neymar, que ele achava meio cai-cai."
Em 20 de maio de 2021, Raul saía de casa para realizar um sonho: a primeira viagem a bordo da carreta que sempre quis possuir. A carregou em Guarapuava, também no Paraná, e partiu para percorrer quase três mil quilômetros até o Maranhão. Pegou covid-19 no caminho e apelou à cloroquina, medicamento sem eficácia comprovada, para tentar combatê-la. Resistiu a ir a um hospital porque seus amigos caminhoneiros lhe diziam que fazê-lo seria um atestado de morte, pois todos que procuravam socorro terminavam intubados e faleciam.
Raul só piorou e acabou internado em um hospital de campanha em Belém. Faleceu na capital paraense no dia 2 de julho, aos 54 anos, sem que Mara pudesse fazer uma chamada de vídeo para se despedir.
Mais dois membros da família de Mara morreram de covid-19. "Hoje mesmo eu estava conversando com a minha tia e ela disse que essa Copa do Mundo seria muito triste. Meu tio e meu primo gostavam muito de Copa. Vestiam a camisa do Brasil e festejavam muito", diz Mara. "Minha tia disse que não vai nem ligar a TV este ano".
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