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Mundo à parte da Cracolândia tem comércio frenético durante jogo do Brasil

Cracolândia durante o jogo Brasil x Coreia do Sul - Rogério Fernandes/UOL
Cracolândia durante o jogo Brasil x Coreia do Sul Imagem: Rogério Fernandes/UOL

Daniel Lisboa

Colaboração para o UOL, em São Paulo

11/12/2022 04h00

Classificação e Jogos

"Normalmente, cada um de nós é um solitário e um incomunicável. O sujeito vive roendo a própria solidão como uma rapadura. E, súbito, o escrete vem e arremessa o brasileiro do seu silêncio e de sua misantropia. Este povo taciturno, caladão, tornou-se um extrovertido ululante. Nas esquinas, nas casas, nos botecos, erguíamos o nosso grito como uma lança agudíssima."

O trecho acima está no livro "À Sombra das Chuteiras Imortais", de Nelson Rodrigues. O escritor fala da conquista brasileira da Copa do Mundo de 1962 como um fator agregador. É possível defender que a tese segue válida até hoje. Sessenta anos depois, porém, há brasileiros para quem a solidão e a incomunicabilidade têm uma dimensão quase intransponível.

O UOL acompanhou uma partida do Brasil na Copa do Mundo em uma das cracolândias de São Paulo. Hoje, os usuários da droga estão espalhados por diversos pontos da cidade. A metástase é resultado direto da falha do poder público em lidar com o problema.

No pequeno trecho onde a avenida São João encontra a rua Helvétia, embaixo do elevado Presidente João Goulart (o "Minhocão"), cerca de 100 pessoas se aglomeram quando começa o jogo. Ainda há um trânsito frenético de pessoas correndo para assistir ao duelo com amigos e familiares, em casa e em bares, com ou sem a camisa da seleção brasileira. Alguns rojões espoucam aqui e ali enquanto a massa de dependentes químicos é vigiada de perto por duas viaturas da Polícia Militar e uma da GCM (Guarda Civil Metropolitana).

Há pelo menos um homem entre os usuários vestindo a camisa da seleção brasileira, além de outro enrolado em uma bandeira do Brasil. O que veste a camisa destoa da maioria: está relativamente bem-vestido, limpo e carrega uma mochila que ele logo abre para compartilhar ou vender algo que não é possível identificar. Não há qualquer sinal de que alguém saiba, ou se importe, com o início da partida.

"Tem que ir lá perguntar para eles", diz um policial quando questionado a respeito. "Mas não é uma boa ideia", emenda uma policial. Nem todos sob o viaduto estão fumando crack durante a partida. Um homem tenta desenrolar uma rede. Outro manuseia freneticamente um grande saco plástico. Não dá para saber se ele está guardando objetos ou se livrando deles. Uma mulher massageia os ombros de uma garota que talvez seja sua filha. Outra garota, mais velha, se separa de um grupo e por um breve instante faz uma dancinha na beira do corredor de ônibus.

"Joga uma granada lá!", diz para a polícia um entregador que passa de bicicleta no meio dos usuários. Quase todo o comércio ao redor do trecho onde eles se amontoam está fechado. Nos dois prédios residenciais de um dos lados da avenida, em apenas um apartamento é possível notar que alguém está assistindo ao jogo. Uma TV está ligada na partida, mas logo alguém fecha a cortina e lá se vai o único sinal de Copa do Mundo no entorno da mini Cracolândia.

Quando Ronaldo Fenômeno teve uma convulsão antes da final da Copa do Mundo contra a França, São Paulo já tinha sua parcela da população que não ficou sabendo do que aconteceu porque estava fumando crack. É de 1998 a primeira referência à Cracolândia em um ano em que o torneio foi realizado.

Uma reportagem da Folha de S.Paulo informa que uma "megaoperação" foi feita na "região conhecida como Cracolândia". A "blitz" envolveu 500 homens das polícias Civil e Militar, mas terminou com apenas quatro detidos e vinte pedras de crack apreendidas.

O ano de 1998 teve seis referências ao problema no jornal. No ano do pentacampeonato, 2002, foram três matérias sobre a Cracolândia. Em 2006 o assunto some, mas volta com força em 2010, com 19 menções. O número explode para 189 referências no ano da Copa no Brasil, 2014, e 155 em 2018.

"Tem gente lá no meio com caixinha de som, gente que sabe da Copa do Mundo", diz Henrique, que prefere não ter o nome inteiro citado. "Dizem que a gente não tem sentimentos, mas não é verdade. Nós usamos drogas justamente para fugir deles."

Henrique tem 35 anos e se diz um "usuário de crack em recuperação". Afirma que está há sete dias sem fumar e já chegou a ficar por um ano assim. Ele está na única loja aberta nas imediações para fazer dinheiro. Compra bebidas para revender aos usuários que estão logo ali ao lado, a talvez 40 passos de distância.

"Gastei R$ 16 em Corote (cachaça) e vinho e vendi por 40", diz Henrique, que também vende por 50 centavos cada cigarro do maço que ele compra por R$ 3. Ele explica a movimentação frenética de pessoas que, aparentemente, não estão ali para consumir drogas. "Os caras fazem de tudo ali. Vendem cachaça, cigarro, roupas, cachimbos, cortam cabelo", explica o rapaz. "Um dia, vou lançar uma grife de roupas da Cracolândia. Gastei R$ 20 para comprar esse tênis, essa calça e essa jaqueta."

O comércio paralelo é visível mesmo à distância e segue em meio ao jogo. São quatro gols do Brasil no primeiro tempo contra a Coreia do Sul, mas nem a gritaria nos prédios ao redor é capaz de penetrar a bolha. Se tinha mesmo alguém escutando o jogo, não achou que era o caso de comemorar.

Henrique reaparece já no final da partida carregando uma sacola. Fez novas compras. "Vou vender essa garrafa de vinho pra ir embora para casa logo."

Na próxima Copa do Mundo, em 2026, a Cracolândia terá completado 30 anos de existência. Seu habitante seguirá solitário e incomunicável, e mais uma vez não haverá vitória capaz de arremessá-lo de seu silêncio.