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Paixão inexplicável e discriminação: a torcida pela Argentina no Brasil

Flavia diz sofrer preconceito por ser negra e torcer pela Argentina - Arquivo Pessoal
Flavia diz sofrer preconceito por ser negra e torcer pela Argentina Imagem: Arquivo Pessoal

Do UOL, em São Paulo

13/12/2022 04h00

Classificação e Jogos

A menina Flávia tinha 11 anos quando, no sofá da sala, chorou na contramão da euforia da família com o pentacampeonato do Brasil na Copa. O ano era 2002, Cafu levantava a taça que a seleção brasileira conquistava pela quinta vez, mas a menina estava chateada. Ela gostava da Argentina. Queria a vitória dos hermanos. Naquele ano, os argentinos, favoritos, ficaram na fase de grupos.

Desde criança, Flávia do Carmo Lima, hoje com 31 anos, adorava ouvir o espanhol. O sonho dela era aprender o castelhano, e foi por meio desse interesse que ela começou a buscar informações sobre o país vizinho. Flávia descobriu Maradona; descobriu, também, uma torcida apaixonada, e por ambos se encantou.

Desde então, Flávia torce pela Argentina. Sem grana em 2002, queria porque queria uma camisa dos hermanos, mas os pais negaram. Para a Copa seguinte, foi guardando as moedinhas que a mãe lhe dava dia ou outro e conseguiu comprar uma bandeira da Argentina. Andava enrolada nela para lá e para cá. Não tirava o manto do corpo nem para almoçar. Passou, então, a ser chamada de Flávia Argentina pela família — que desistiu de tentar reverter a paixão pela seleção rival. O codinome perdura até hoje.

Em 2014, Flávia conheceu um argentino e se casou. À filha, deu o nome de Antonella, em homenagem à esposa de Lionel Messi. "Um dia vou ver o Messi de perto e vou dizer a ele o quanto me ajudou a superar momentos difíceis. Estou com depressão por causa de uma separação, e ver a Argentina jogando me faz ter esperança por dias melhores. Nunca será só futebol".

Flávia afirma ouvir de colegas brasileiros que, por ser uma mulher preta, não deveria torcer pela Argentina. "Muitos me dizem que é um país racista. Mas o Brasil também é racista e muitas pessoas aqui torcem. Não vou julgar um país por meia dúzia de torcedores. Torço por amor e não por obrigação", diz.

Tatuagem de Messi por aposta

tatuagem de Messi Argentina - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
Tatuagem de Juliana retrata Messi
Imagem: Arquivo Pessoal

A paixão pela Argentina virou tatuagem quando a promessa de Juliana Ciardi, 29, se concretizou: ela prometeu que se os hermanos vencessem a última Copa América, ela tatuaria o Messi. Dito e feito. A tatuagem média ganhou espaço no antebraço, e o desenho foi com base numa foto escolhida por amigos de Juliana.

O carinho pela Argentina começou quando Juliana era criança e convivia bastante com a avó, que era apaixonada por Carlos Gardel. Ela cresceu no tango e se propôs a conhecer a cultura do país vizinho com afinco. O tio, fã do Maradona, inspirou Juliana a ficar de olho em uma lenda que começava a atuar no Barcelona: Lionel Messi.

Houve, ainda, uma conexão de torcidas: Juliana é corintiana, e afirma que a torcida argentina é a mais parecida com a de seu time do coração: não para de cantar independentemente da circunstância. A última vez que ela torceu pelo Brasil foi em 2002. Em 2018, conheceu Buenos Aires e a paixão só se firmou ainda mais: diferentemente do que dizem os turistas brasileiros na capital argentina, Juliana afirma ter sido muitíssimo bem tratada.

"Nas redes sociais, recebo alguns xingamentos. Há pessoas que perguntam se eu não tenho vergonha de torcer pela Argentina. Mas não ligo. Meus amigos já aceitaram."

"Não saio com camisa da Argentina por medo"

Livia Lee - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
Livia Lee
Imagem: Arquivo Pessoal

Foi vendo a Argentina de Maradona jogar que a musicista Lívia Lee virou a casaca. Pelos pais, era constantemente podada: "Ouvia que os argentinos eram maus e que a gente não podia torcer por eles", conta. Não adiantou. Na Copa de 1990, Lívia conta que passou todos os jogos sem poder dar um pio. Ordem da família.

Mas, quando veio a adolescência e a rebeldia típica da idade, não teve como: ela assumiu a paixão pela Argentina e não mais se esforçou para esconder. "Achava os jogadores lindos, até o Tevez quebrar isso e ficar só o futebol mesmo", ri. "Faniquitos à parte, sempre achei a Argentina uma seleção muito raçuda; o jogo do Brasil não me encanta tanto, acho que joga de salto alto. A Argentina é dona do meu coração, que é azul e branco. Eles entram em campo e meu olho até brilha".

Lívia é mineira e mora em São Paulo há dez anos. Quando tem jogo da Argentina, negocia com o chefe no trabalho para compensar com horas extras e ser liberada para assistir à partida.

Só que ela ainda teme sair de casa vestindo a camisa da seleção rival. Em época de Copa do Mundo, então, Livia nem ousa. "Se fora da época de Copa as pessoas já olham estranho, imagine durante? Prefiro evitar", conta. A família desistiu de tentar demovê-la da ideia da torcida — mas ela não consegue evitar o bullying quando a Argentina perde.

Vizinho raivoso e filho "brargentino"

Jessica e o filho - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
Jessica e o filho
Imagem: Arquivo Pessoal

Os olhares confrontantes e as falas desagradáveis também fazem parte da vida da professora Jéssica Bileski, 37. E tudo por sua torcida pela Argentina, que começou em 2008 depois de uma viagem para Buenos Aires. O encanto foi tanto, e de cara, que todas as férias que vieram na sequência tiveram o mesmo destino.

Nas idas e vindas, ela conheceu seu então marido, argentino, e seu filhinho de sete anos nasceu na Argentina. O casamento acabou, ela e o filho moram no Brasil, mas a paixão pela Argentina prevalece.

Fã de futebol, Jéssica curte acompanhar a Libertadores e é fã do futebol sul-americano. No começo desta Copa, o coração deu uma dividida entre Brasil e Argentina, mas foi só ver Messi entrar em campo que a dúvida foi sanada rapidinho. "Estava preocupada com uma semifinal entre Brasil e Argentina, apesar de meu coração querer a Argentina. Agora, estou mais tranquila. Posso torcer sem culpa".

"Ainda assim, também queria que o Brasil mandasse bem, por todo o cenário político dos últimos anos. Acho que os brasileiros mereciam. Meu filho diz o mesmo: por ele, Brasil e Argentina têm de ganhar a Copa."

Quando sai de casa vestida com o manto azul e branco, Jéssica tem de lidar com comentários agressivos por parte do vizinho. "Ele faz comentários com raiva", conta. "Diz que a Argentina vai perder e que a gente vai ter que aguentar", conclui. Para Jéssica, a América Latina é desunida. Isso deveria mudar.