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Líder da Croácia, Modric aprendeu na guerra a controlar o tempo e o espaço

Luka Modric, da Croácia, em ação contra a Bélgica na fase de grupos da Copa do Qatar - Pablo Morano/BSR Agency/Getty Images
Luka Modric, da Croácia, em ação contra a Bélgica na fase de grupos da Copa do Qatar Imagem: Pablo Morano/BSR Agency/Getty Images

Thiago Arantes

Colaboração para o UOL, em Barcelona

13/12/2022 04h00

Classificação e Jogos

Controlar o tempo e o espaço é um dos desafios mais complexos do futebol moderno. Para Luka Modric, desde os primeiros anos de vida, é uma questão de sobrevivência.

Na infância de Modric, os espaços da cidade de Zadar, na costa da Croácia, ganharam novos significados. O hotel Kolovare, adaptado para receber refugiados, virou a casa da família. Uma fortaleza em que o subsolo servia como esconderijo antibombas; e o estacionamento, como campo de futebol.

Com uma bola nos pés, Luka corria, quebrava vidraças com seus chutes e desviava dos adultos que quase não o notavam, em um esforço para viver na plenitude aqueles anos que jamais seriam plenos. O pequeno Modric tentava parar o tempo.

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Luka Modric cresceu em meio à guerra pela independência da Croácia
Imagem: Divulgação

Para além dos limites do estacionamento daquele hotel, eram tempos difíceis. A Guerra Civil Iugoslava (1991-2001) mudou o destino de milhares de croatas. No vilarejo de Modric, que dava nome à família, a história de horror foi apenas mais uma: uma ofensiva de rebeldes sérvios matou o avô de Luka e fez seus pais fugirem durante dois dias por caminhos nas montanhas, em busca de refúgio.

O futebol cruzou esse caminho tortuoso quando o garoto tinha 6 anos. Como forma de ajudar as famílias refugiadas, as escolinhas do NK Zadar passaram a recrutar crianças nos abrigos.

"Durante a guerra, nós aceitávamos todas as crianças, para que elas pudessem fazer alguma atividade e não ficassem apenas em lugares fechados. Foi assim que Luka chegou. Era uma criança muito frágil, não dava para imaginar que seria um jogador importante", explicou Miroslav Basic, diretor da escolinha, a um documentário da TV espanhola Movistar. Nos primeiros anos, era comum interromper os treinos por causa de algum ataque das forças sérvias.

Pai e filho

Entender as origens de Modric é importante para compreender algumas de suas atitudes mais de 30 anos depois. Após a vitória da Croácia sobre o Brasil na decisão por pênaltis, nas quartas de final da Copa de 2022, o camisa 10 croata foi consolar Rodrygo, que havia errado a primeira cobrança brasileira. Os dois são companheiros no Real Madrid.

"Vamos, hein! Seja forte. Não foi nada, não foi nada. Você é mais forte do que isso. Todos falham, todos falham. Você vai voltar ainda mais forte. Te amo, filho", disse Modric.

Mais do que colegas de clube, eles têm uma relação muito próxima. A ponto de se chamarem de pai e filho. A brincadeira começou quando Modric, 37, perguntou a idade do pai de Rodrygo, 21, e descobriu que era apenas um ano mais novo.

"Desde então, ele passou a me chamar de filho, e eu de pai. É um prazer poder chamá-lo de papai e ter um relacionamento tão bom. Ele me ajuda muito, sempre que preciso de alguma coisa ele está lá para ajudar", explicou Rodrygo em entrevista à agência EFE.

"Muito pequeno e muito magro"

A guerra que mudou a vida dos Modric estendeu-se na Croácia até 1995, e seguiu por outras regiões da antiga Iugoslávia até 2001. Na época, o Hadjuk Split chegou a fazer um teste com Luka, mas queria jogadores mais fortes fisicamente. O Dínamo de Zagreb resolveu apostar no jovem, então com 16 anos. Depois de sobreviver a uma guerra, era hora de encarar outro desafio.

"Escolhemos ele pela qualidade. Mas quando vimos, sem conhecê-lo, pensamos que ia ser muito difícil, porque ele era muito pequeno e muito magro. Só que ele era muito rápido e tinha uma capacidade enorme de ler o jogo", contou à Movistar o dirigente Romeo Jozac, comandante das categorias inferiores do Dínamo e responsável por contratar Modric.

A leitura de jogo do jovem Luka --aquela capacidade para controlar o tempo e o espaço, que ele tinha desde a infância-- não foi o suficiente. O discurso da falta de imposição física se sobrepôs, e o Dínamo começou a emprestá-lo a equipes menores, para adquirir mais experiência.

Mais do que apenas experiência e tempo de jogo, Modric tornou-se conhecido no futebol dos Balcãs. No primeiro empréstimo, ao Zrinjski Mostar, ele foi eleito o melhor jogador do ano na Liga Bósnia, com apenas 18 anos. Na temporada seguinte, de volta à Croácia, ajudou o Inter Zapresic a ser vice-campeão nacional.

A conquista da Europa

O Dínamo de Zagreb percebeu a joia que tinha nas mãos e ofereceu uma renovação de contrato. Com as luvas, Modric comprou uma casa para os pais em Zadar; a cidade que os acolheu durante a guerra. Nos três anos seguintes, sempre no Dínamo, foram três títulos nacionais. A cada temporada, Modric ganhava mais espaço e mais protagonismo. De revelação a jogador do ano; de jogador do ano a capitão do time.

As notícias do que acontecia na Liga Croata chegavam aos escritórios dos grandes clubes europeus. Barcelona, Arsenal e Chelsea fizeram propostas. O clube catalão era uma paixão antiga, mas na época tinha muitos jogadores para o meio-campo: Busquets, Xavi, Iniesta e Yayá Touré.

Em abril de 2008, o Tottenham anunciou a contratação do croata, por 20 milhões de euros (R$ 112 milhões, em valores atuais). Nos quatro anos em Londres, Modric tornou-se ídolo, devolveu o clube à Champions League após quase cinco décadas e fez uma parceria inesquecível com Gareth Bale, que aparecia como uma das grandes promessas do futebol mundial.

O desempenho chamou a atenção do Real Madrid, que pagou 35 milhões de euros (R$ 196 milhões) pelo meio-campista, em agosto de 2012. No time mais laureado do século 20, Modric teria pela frente o desafio de quebrar o tabu de títulos da Champions League, que durava desde a temporada 2001-02. Primeiro, ele teria de encontrar uma vaga entre os titulares.

Controlar o espaço

Para ganhar espaço no Real Madrid, Modric sofreu. No início, sob o comando de José Mourinho, ele era reserva do trio formado por Sami Khedira, Xabi Alonso e Mesu Ozil, e também disputava minutos com o ganês Michael Essien, muito mais forte e corpulento.

Então, o Luka de 27 anos aprendeu com o Luka adolescente: a única forma de se sobressair seria pela leitura do jogo, pelo controle dos espaços no campo. Não se tratava de ter força para disputar a bola com os rivais; a questão era como organizar o jogo de tal forma a evitar essa disputa.

Os últimos meses da Era Mourinho foram melhores para Modric, mas foi com Carlo Ancelotti que o croata estourou: passou definitivamente de ser um meia-atacante para tornar-se um "todocampista", multiplicando-se em diferentes lugares do campo.

A chegada de Toni Kroos após a Copa de 2014 plantou a semente do que seria o meio-campo mítico do Real Madrid supercampeão da Champions League. No ano seguinte, a chegada e consolidação de Casemiro montou o tripé que ampliaria a prateleira de troféus do clube: atualmente são 14, cinco deles com Modric.


Controlar o tempo

Aos 37 anos, Modric chega a uma semifinal de Copa do Mundo tão celebrado como há quatro anos, na Rússia, quando alcançou a final e foi eleito o melhor jogador do torneio. Em 2018, ele foi também o único a romper o domínio de Lionel Messi e Cristiano Ronaldo na premiação da Bola de Ouro.

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Modric, Casemiro e Kroos celebram título da Champions League com a camisa do Real Madrid
Imagem: Helios de la Rubia/Real Madrid via Getty Images

O croata que tentava parar o tempo para não perder sua infância para a guerra, encontrou uma fórmula de também esticar a própria carreira.

Além de manter o alto nível no ambiente competitivo do Real Madrid, ele raramente sofre lesões e não pede para ser reserva nem nos duelos menos importantes. Na temporada 2021/22, ele foi o meio-campista com mais minutos disputados nas grandes ligas europeias.

"Eu apostaria que ele ainda vai jogar a Eurocopa (de 2024). E não acho que a história dele em Copas esteja em seu último capítulo", disse Mate Bilic, ex-companheiro de Modric na seleção croata, à emissora espanhola Gol Mundial.

Na Copa do Mundo de 2026, Modric terá 40 anos.

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Messi e Modric lutam pela bola no duelo de 2018: Croácia venceu por 3 a 0
Imagem: Gabriel Rossi/Getty Images

Um ciclo que se fecha

O duelo contra a Argentina, nesta terça-feira (13), pela semifinal da Copa do Mundo, fecha mais um ciclo vital para o camisa 10. Foi contra a Albiceleste que ele estreou pela seleção da Croácia, em 1º de março de 2006, em um amistoso na Basileia. Os croatas venceram por 3 a 2.

Naquele duelo, Lionel Messi fazia seu quarto jogo pela seleção e marcou seu primeiro gol com a camisa argentina.

Passados 16 anos, ambos se encontram para disputar uma final de Copa do Mundo, ambos em grande forma. Messi soma quatro gols na Copa do Mundo, dois deles em mata-mata, algo que nunca havia acontecido. E Modric, mesmo sem gols, é quem comanda e dita o ritmo da seleção croata.

Controlando o tempo e o espaço, como naquele hotel em Zadar, há mais de três décadas.