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Gigante falido, Rangers influencia até saúde de rival na Escócia

Fachada do estádio de Ibrox, do Glasgow Rangers, na Escócia - UOL/Fernando Duarte
Fachada do estádio de Ibrox, do Glasgow Rangers, na Escócia Imagem: UOL/Fernando Duarte

Fernando Duarte

Do UOL, em Glascow (ESC)

02/05/2013 06h00

Logo após o apito final na derrota por 2 a 1 para o Peterhead,no sábado retrasado, o time do Glasgow Rangers deixa o campo sob vaias de sua própria torcida. Por dentro, porém, os jogadores devem estar agradecidos: 43 mil fãs da equipe da maior e mais populosa cidade da Escócia enchem a arquibancada do estádio de Ibrox não só para um jogo sem a menor importância, mas para uma partida da Quarta Divisão. Recordista mundial de títulos nacionais (54) e um dos clubes de futebol mais antigos do mundo (141 anos), o Rangers foi mandado para as profundezas do já combalido futebol escocês como punição por uma esquema de evasão fiscal descoberta no ano passado pelo equivalente britânico à Receita Federal.

Na ânsia de competir com seu principal rival, o Celtic, pela hegemonia nacional e a chance de participar do festa milionária da Liga dos Campeões, o Rangers voou perto demais do sol. Investiu alto em contratações e salários num mercado nem de longe tão competitivo quanto os vizinhos europeus e que nos últimos cinco anos já encontravadificuldades para arranjar melhores receitas de TV e mesmo para encher estádios.

TORCIDA DO RANGERS LOTA O IBROX NO JOGO CONTRA O PERERHEAD

Para se ter uma ideia, da arrecadação de US$ 54 milhões em 2011, o Rangers gastou quase US$ 45 milhões apenas em salários. Enquanto foi possível fazer malabarismo com dívidas, tudo bem. O problema é que o Fisco inglês bateu à porta cobrando quase US$ 150 milhões em impostos devidos, expondo um esquema de transações pelos quais jogadores e executivos recebiam uma caixa dois para driblar o leão.

Cinco anos anos depois de figurar como o 25o clube mais valioso do mundo no ranking da revista de economia Forbes, o Rangers passou a temporada de 2012/13 medindo forças com equipes semiprofissionais. Num momento em que a Europa discute medidas de responsabilidade fiscal, a via-crúcis de um clube tradicional é um exemplo de como se pode cair das nuvens.

Torcedores que em 2008 estavam no estádio City of Manchester para ver seu time decidir a Liga Europa de 2008 contra o Zenit de São Petersburgo tiveram o choque de realidade de viajar para localidades da Escócia com instalações que fariam clubes de várzea no Brasil torcerem o nariz.

Além de más condições, enfrentaram a ganância dos competidores da Quarta Divisão, que viram na presença do gigante um filão para um campeonato cuja média de público na temporada anterior tinha sido de 475 pessoas por partida.Torcedores do Rangers compraram ingressos a preços até 100% inflacionados, que incluíam a obrigatória zombaria dos torcedores adversários.

‘’Jogamos em algumas cidades que sequer tinham quartos de hotel suficientes para os torcedores visitantes. Só muita paixão explica o que estamos aturando. Alguns estádios eram piores que campinhos de colégio’’, comenta Billy Horner, 45 anos, sócio do Rangers que seguiu o time em 10 partidas fora de casa na temporada 2012/13.

A humilhação, porém, serviu como elemento agregador dentro e fora de campo. Maior artilheiro da história do Rangers, o treinador Ally McCoist e jogadores populares como Lee McCulloch e Kyle Hutton remaram na direção contrária do êxodo de jogadores após o rebaixamento. Por sua vez, os torcedores deram ao Rangers um novo recorde mundial em média de público para partidas de quarta divisão, com mais de 45 mil pessoas por partida em Ibrox (o recorde mundial para uma partida, por sinal, é Santa Cruz na Série D do Brasileirão).

Tal fidelidade veio acompanhada de ressentimento. Na tarde em que o UOL Esporte se misturou aos torcedores que foram a Ibrox para o jogo contra o Peterhead, conversas invariavelmente mencionaram o que ficou interpretado como uma traição dos outros clubes da Primeira Divisão – uma proposta do Rangers de disputar a Segunda Divisão foi negada por uma assembleia dos competidores em que 25 de 30 clubes, incluindo 10 dos 12 da Primeira Divisão, votaram contra.

Mas na cabeça de muitos fãs o Celtic acabou eleito o grande armador do empurrão para o abismo, ainda que o rival local tivesse pouco interesse em ver a derrocada do Rangers: o rebaixamento não só derrubou o valor das receitas de TV como resultou em menos gente interessada nas partidas – apenas o Celtic registrou queda de mais de 15% no público na atual temporada. Menos público pagante é algo ainda mais preocupante quando a Liga Escocesa, ao contrário de outras competições europeias, depende muito mais da venda de ingressos que dos direitos de transmissão.

LOUDEN TAVERN, PUB VIZINHO AO IBROX

  • UOL/ Fernando Duarte

‘’Para uma série de pessoas, o clássico entre Celtic e Rangers sempre foi a principal razão de ser da Liga Escocesa. É impossível não sentir os efeitos da saída do Rangers, que podem se aprofundar ainda mais’’, explica David Glen, analista da empresa de consultoria PWC.

Na cabeça dos torcedores do Rangers, porém, é razão de sobra para odiar os vizinhos de cidade. É preciso lembrar que a rivalidade entre os dois times transcende a competição em gramados. Rangers e Celtic se tornaram símbolo das divisões político-religiosas na Escócia. O clube recém-rebaixado é de orientação protestante, ao passo que o Celtic foi abraçado pela minoria católica, sobretudo por ter sido fundado por imigrantes irlandeses.

Sendo assim, intolerância religiosa permeia bravatas esportivas. No Loudon Tavern, pub praticamente adjacente a Ibrox, músicas ironizando o escândalo dos padres pedófilos se misturam às declarações de amor ao Rangers e a intensidade nos coros sugere que a polícia de Glasgow deve ter secretamente comemorado a ausência do clássico pelo menos pelas próximas duas temporadas.

Isso porque o Rangers começa a subir o abismo. Mesmo sob austeridade absoluta, os recursos à disposição do Rangers ainda são superiores mesmo ao de concorrentes da turma da elite. O título da Quarta Divisão foi conquistado com cinco rodadas de antecedência e ninguém tem muitas dúvidas de que o retorno à primeira não deve demorar muito. A dúvida é se algum dia os tempos de protagonismo retornarão.

“Nós amamos o Rangers, independente de que divisão estiver. Somos o clube do povo e voltaremos a mostras isso”, afirma Robert Marshall, dono da Louden Tavern, pouco antes de pegar o microfone para puxar mais um coro com os frequentadores do bar. Ao fundo, porém, as imagens nas telas de TV são de jogos do passado. Sequer os melhores momentos da temporada.

TORCIDA DO RANGERS LOTA O IBROX CONTRA O PERERHEAD

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