Defendido por Havelange, Videla usou Copa em prol da ditadura Argentina
Morto na última sexta-feira, o ditador Jorge Rafael Videla foi um dos principais personagens do Mundial mais controverso da história. À frente da Argentina entre 1976 e 1981, usou a Copa do Mundo de 78, organizada no país e vencida pela seleção local, como propaganda de um governo responsável pela morte de 30 mil pessoas.
HAVELANGE E VIDELA
Videla me disse: "Senhor Havelange, não vou lhe dar a melhor Copa, mas vou lhe dar uma das melhores, pode estar certo". E fez tudo
Muitas dessas vítimas foram torturadas e executadas na sede da ESMA (Escola de Mecânica da Armada), cujo o prédio fica a 10 quadras do estádio Monumental de Nuñez, onde a seleção argentina venceu a partida final a Copa, sobre a Holanda, já sem Cruyff, por 3 a 1. A proximidade geográfica entre os locais é vista por muitos argentinos hoje como uma metáfora do que foi aquele Mundial: quando milhões de torcedores vibravam de alegria com a vitória do futebol local enquanto milhares de presos eram torturados e mortos.
“O tema dos desaparecidos naquela época não era midiático. Era escondido, restrito para famílias e vítimas da ditadura”, lembra o jornalista Guillermo Blanco, que cobriu o Mundial pela revista "El Gráfico".
A imagem do bigodudo Videla ao lado do já senhor, mas sempre atlético, João Havelange na tribuna de honra do Monumental de Nuñez no dia da final simboliza a proximidade dos dois. Foi na década de 70 que o cartola criou o modelo lucrativo de uma Copa patrocinada por empresas privadas, como a Coca-Cola, mas também majoritariamente bancada pelos governos dos países-sedes.
Do general, Havelange ouviu “sim” quando quis e, seguindo o seu pragmatismo nas relações políticas, tampouco disse “não” para a utilização do torneio como propaganda de um regime ditatorial.
DITADOR MORREU PRESO E SEM PEDIR PERDÃO
Videla era mantido no presídio de Marcos Paz, no subúrbio de Buenos Aires, onde morreu durante a madrugada por causas naturais, segundo um porta-voz da Secretaria de Direitos Humanos do governo. Organizações de direitos humanos contabilizam cerca de 30 mil opositores assassinados pela ditadura militar na Argentina. Outros crimes imputados aos responsáveis pela repressão ilegal são torturas e roubo de bebês, que eram arrancados das vítimas. "Foi um desprezível... que nunca se arrependeu", afirmou Estela de Carloto, presidente da Associação das Avós da Praça de Maio, que há décadas se dedica a buscar filhos de desaparecidos roubados durante a ditadura e que ainda desconhecem sua identidade.LEIA MAIS
“Quando cheguei à Fifa, quem decidiu que a Copa ia ser na Argentina não fui eu nem o Comitê Executivo. Foi o Congresso [da Fifa], e você não pode mudar uma decisão do Congresso. Pode falar o que quiser. Eu só apertei o governo anterior, que era da senhora do Perón [Isabelita]”, contou o cartola em entrevista ao jornal Folha de S.Paulo, em 2008.
A escolha da Argentina como sede do Mundial, é verdade, aconteceu antes de Havelange e Videla chegarem ao poder. Foi em 1966. O brasileiro assumiu a presidência da Fifa em 1974 e o general tomou o governo da Argentina dois anos depois, em 1976, após um golpe militar.
“Fui ver o presidente Videla, não o conhecia. Ele me disse: "Senhor Havelange, não vou lhe dar a melhor Copa, mas vou lhe dar uma das melhores, pode estar certo". E fez tudo”, disse Havelange.
“Não se tem notícia de que Videla era um fã de futebol. Foi algo por conveniência política aquelas imagens dele comemorando os gols da seleção”, afirma Guillermo Blanco. Em raras entrevistas, o ditador revelou ter simpatia pelo Independiente, clube popular de Avellaneda, em Buenos Aires. “Ao usar o futebol, tampouco foi original. De longe, não foi o único ditador a se aproveitar do esporte”, completa.
JOGADORES NEGAM QUE REGIME DITATORIAL AJUDOU TÍTULO DA ARGENTINA
Se o uso do Mundial como propaganda da ditadura é quase uma unanimidade entre os argentinos, a tese de que Videla influenciou no resultado do torneio encontra resistências, principalmente entre “boleiros” e torcedores. “Não fazia política, fazia gols. E só na final, contra a Holanda, marquei dois. Dizer que tivemos ajuda de alguém é uma bobagem”, contesta o artilheiro daquela Copa, Mario Kempes.
Não fazia política, fazia gols. E só na final, contra a Holanda, marquei dois. Dizer que tivemos ajuda de alguém é uma bobagem
Paradoxalmente, os jogadores argentinos eram treinados por Cesar Menotti, técnico de conceitos e discurso arrojados e que sempre se disse um socialista.
“Todos os presos políticos, os perseguidos, os torturados e os familiares dos desaparecidos estavam esperando que Menotti dissesse algo, que tivesse um gesto solidário, mas não disse nada. Ele também estava fazendo política com o seu silêncio”, afirmou Adolfo Pérez Esquivel, prêmio Nobel da Paz em 1980, que conseguiu ser liberado de uma prisão argentina graças à pressão internacional, no dia 23 de junho de 1978, dois dias antes da final do Mundial.
“É provável que tenha sido permissivo de ter aceitado diálogo com pessoas que não deveria. Isso me irrita muito. Mas fui muito leal com o meu time e a minha gente”, se defende Menotti.
A principal suspeita de influência do governo local no resultado do torneio recai sobre o jogo que levou a Argentina para a final, a goleada por 6 a 0 sobre o Peru. Ramón Quiroga, argentino naturalizado que defendia o gol peruano, disse em 1998 que ele e seus companheiros receberam dinheiro para entregar o jogo. Depois recuou.
Outro peruano que esteve na derrota, o atacante Oblitas revelou que o time recebeu a visita de Videla no vestiário antes do jogo. “Veio nos cumprimentar. Com ele estava nada mais nada menos que o secretário de Estado dos Estados Unidos, Henry Kissinger”, disse.
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