"Minha família lamenta sozinha". Pai de Kevin fala um ano após tragédia
Há um ano, Limbert Beltrán estava preocupado se o filho mais velho, de 14 anos, conseguiria embarcar no ônibus rumo a Oruro, na Bolívia. Nesta quinta, fará uma missa em homenagem ao primogênito, que morreu atingido por um sinalizador de navio disparado dentro de um estádio de futebol por torcedores do Corinthians.
“Vão estar só a família e os estudantes que eram companheiros de curso dele. Somos o único grupo que sentiu a perda do meu filho, que está todo momento sofrendo”, disse Limbert, em entrevista exclusiva ao UOL Esporte.
Kevin morreu no dia 20 de fevereiro de 2013, quando o sinalizador perfurou seu olho direito. O crime chocou o Brasil e a Bolívia, despertou discussões sobre seguranças em estádio e desencadeou uma série de eventos. Ninguém, no entanto, sofreu marcas tão fortes quanto a família do jovem.
“Minha esposa e eu voltamos às nossas atividades. Não podemos deixar de trabalhar. Somos professores, encontramos na profissão alguma compensação do que sofremos. Meus outros filhos têm dificuldade para dormir, ficaram muito traumatizados. São muito introvertidos, calados”, disse Limbert.
A família sofre com a impunidade. Os 12 corintianos que passaram mais de quatro meses presos foram considerados inocentes, e o menor que assumiu a autoria do disparo segue em liberdade no Brasil. Limbert reclama da intervenção política que o processo sofreu, e alega que ao menos dois dos torcedores que estavam detidos eram, de alguma forma, cúmplices do crime.
“Eles tinham pólvora nas mãos, e ajudaram a colocar o sinalizador para dentro do estádio. Para mim isso é um crime também”, disse Limbert. “O processo foi uma farsa. Nós elogiamos muito a habilidade dos políticos que conseguiam burlar a Justiça que deveriam defender”, disse Jorge Ustarez, tio de Kevin e advogado que acompanhou o caso.
Na época da morte de Kevin, Roger Pinto Molina, senador de oposição na Bolívia, estava refugiado na embaixada brasileira. Durante o processo, cogitou-se que a intervenção direta dos dois governos em ambos os casos sugeririam uma troca de favores. No fim, o político deixou a Bolívia de maneira clandestina, autorizado pelo ministro Eduardo Saboia, o mesmo que negociou a libertação dos 12 corintianos.
Além disso, o caso foi acompanhado de perto por autoridades de peso. Mário Gobbi, presidente do Corinthians, reuniu-se com dois ministros de Dilma para pedir ajuda. Depois da soltura dos brasileiros, Evo Morales, presidente boliviano, admitiu que teve influência no desfecho do caso.
Briga pela indenização
A família de Kevin recebeu U$50 mil de indenização, a título de ajuda humanitária, do Corinthians. O valor prometido pela CBF (Confederação Brasileira de Futebol) pelo amistoso da seleção brasileira nunca chegou, e o San José também não foi de grande ajuda.
Que fez o San José pelo meu filho, fora dar uma placa? Que fez a Conmebol, fora multar e perdoar? Que fez por ele a que se dizia a maior equipe da América? Eu sei que o presidente dedicou um título aos presos. É uma afronta à memória do meu filho, à minha família e ao meu povo
Mesmo o valor repassado pelos brasileiros foi motivo de contestação. A primeira conversa com o Corinthians foi em 14 de março. Por intermédio de Mauricio Vitorino, vice-cônsul do Brasil em Cochabamba, cidade da família Beltrán Espada, o clube conversou com Limbert e seu advogado.
A proposta de destinar até US$ 200 mil da renda de uma partida foi, inicialmente, negada por Limbert, que achou o valor muito pequeno. Segundo ele, depois da recusa, Vitorino, que servia de intérprete, teria repassado de forma equivocada uma contra-proposta exagerada ao Corinthians, que por isso também teria declinado.
As partes ficaram sem conversar até o início de abril, quando a seleção brasileira foi até Santa Cruz de la Sierra. Àquela altura, já havia um clamor às autoridades pela liberação dos 12 corintianos de Oruro. Limbert, então, recebeu uma comissão de deputados e membros da embaixada brasileira.
“Me levaram até Santa Cruz de la Sierra. Me deram as condolências e ofereceram US$ 200 mil. Agradeci e disse que não iria colocar obstáculos à saída dos inocentes. Quero dizer que, por mim, pelo menos dez poderiam ter saído já em abril”, disse Limbert.
O problema é que, nesta comissão, não havia nenhum dirigente corintiano. Os deputados falaram no valor contando com a oferta anterior do clube, sem a autorização do mesmo. O acordo entre a família e os políticos não foi divulgado a pedido do próprio Limbert. “Foi um erro que eu cometi, devia ter falado com a imprensa”, disse ele.
Os 12 presos só seriam libertadores em junho. Antes da saída, o Corinthians foi procurado pela família e ofereceu U$ 50 mil. Àquela altura, alega o clube, não havia condição financeira de manter a oferta anterior. O valor inferior àquele conversado inicialmente, e o empenho da gestão de Mário Gobbi em libertar os prisioneiros incomodaram Limbert.
“Eu senti que desvalorizaram a vida do meu filho. Eu li que o presidente do Corinthians dedicou um campeonato [Paulista] aos 12 presos. Isso é uma afronta à memória do meu filho”, disse o pai de Kevin.
PROCESSO ESTÁ SEM PROMOTOR NA BOLÍVIA
Desde que foi instaurado, o processo que investiga a morte de Kevin Espada passou pelas mãos de quatro promotores na Bolívia. Abigail Saba iniciou as investigações e foi afastada para dar lugar a Alfredo Santos.
Foi ele quem acompanhou o processo de soltura dos 12 corintianos presos, tendo visitado o Brasil para colher o depoimento do menor que assumiu a autoria do disparo. No segundo semestre de 2013, Rubén Arcienaga, foi designado para seguir tocando o processo.
O problema é que o promotor abandonou suas funções em dezembro passado. Alguns de seus casos cíveis passaram para Maria Portillo, mas não os de homicídios como o que investiga a tragédia de Kevin.
“Está assim desde dezembro, por isso não posso nem te confirmar se ele está, ou não, encerrado. Tem de ter paciência. Nos próximos meses devem designar um promotor”, disse Portillo ao UOL Esporte, repetindo o discurso de todos os outros promotores.
Algo foi feito para evitar um novo caso Kevin?
No âmbito esportivo, não. O regulamento disciplinar da Conmebol segue o mesmo de 2013, que dá poderes para que seu tribunal puna os clubes pelo uso de artigos pirotécnicos em jogos de futebol. O Corinthians, à época, teve de atuar uma vez com portões fechados e pagou uma multa.
Na letra fria da lei, a aplicação da pena não deveria ter nada a ver com a morte de Kevin, já que incidentes dessa gravidade não estão previstos no regulamento. Em entrevista ao UOL Esporte, porém, Caio Rocha, presidente do tribunal que julga os casos para a Conmebol, admitiu que o peso dado ao caso alvinegro foi maior pelas consequências.
“No caso do Corinthians, houve um desfecho trágico e a tragédia é absolutamente lamentável. Isso com certeza foi avaliado por todos os membros e acho que eles chegaram em um parâmetro, a meu ver, acertado”, disse o jurista em março do ano passado.
Hoje, porém, o próprio San José, rival do Corinthians naquele jogo que também foi multado, admite que outros órgãos tiveram responsabilidade pelo incidente.
“Com a cabeça fria, um ano depois, projeto a culpa para a polícia. Um portão estava cheio de torcedores, por isso os oficiais Indicaram que havia um outro local disponível. Não revistaram nada dos brasileiros. Esse foi o erro. Se fizessem isso antes não teriam entrado com o sinalizador no estádio”, disse Fernando Alvarez, diretor de futebol do clube de Oruro.
Na Bolívia, ao menos, uma nova lei foi implantada. Hoje, está proibido no país o uso de artigos pirotécnicos em estádios de futebol. Ainda não há porém, o procedimento único de segurança para estádios da Conmebol que o Corinthians cobrou logo após a tragédia.
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