Pelé foi alvo de racismo na carreira, mas ignorou luta antirracista
Assim que chegou ao Santos, ainda adolescente, Edson Arantes do Nascimento passou a ser chamado de “Gasolina” pelos outros jogadores do time. O apelido se referia à cor da substância que dá origem a esse combustível, o petróleo, negro como a pele do recém-chegado. E ficou vivo tempo suficiente para Edson pensar que seria assim que ele ficaria conhecido no mundo do futebol.
A imprensa paulista preferiu chamá-lo de Pelé, apelido cunhado durante sua infância em Bauru. Mas na Copa de 1958, seus companheiros começaram a chamá-lo de outra coisa: Alemão. Era uma ironia que marcava a clara oposição entre o seu tipo físico – e a cor de sua pele – e o dos atletas europeus.
O “Alemão” foi abandonado ainda na Suécia, mas Pelé continuaria a ser chamado, ao longo da carreira, por outras palavras que remetiam à cor de sua pele, como se essa característica física fosse definidora de sua personalidade. “Crioulo” é o termo que mais aparece nos jornais dos anos 60 em referência a ele. Em geral, a palavra foi usada de maneira intencionalmente afetuosa, embora seu uso exponha um discurso racista que define socialmente uma pessoa negra a partir da cor de sua pele.
Quando a seleção brasileira conquistou seu primeiro título mundial, Pelé foi o personagem principal de uma reportagem da revista Cruzeiro, na qual ele é comparado à figura folclórica do Saci-Pererê. Na mesma revista, um texto que descreve a passagem dos jogadores brasileiros pela Suécia sugere que uma criança loira se assombraria com a presença negra de Pelé e exclamaria ao ouvi-lo dizer alguma coisa: “Mamãe, mamãe, ele fala!”. Pelé, assim, é comparado a um animal, cuja capacidade de falar seria uma surpresa.
A descrição desses momentos está na biografia Pelé: estrela negra em campos verdes, de Angélica Basthi, um livro que aborda a relação do jogador com a questão racial.
O sociólogo Muniz Sodré, especialista em estudos sobre a mídia, vê “nesses enunciados depreciativos” sobre Pelé a ética que mostra “o diferente do paradigma branco-europeu como um ‘inumano universal’ ou como uma outra espécie biológica não plenamente identificável como humana.”
Mesmo já considerado o maior jogador do século e inspiração para milhões de negros no mundo todo, Pelé nunca se engajou na luta antirracista e chegou a ser cobrado por isso ao longo da carreira.
Há duas semanas, ao comentar o enfrentamento do goleiro Aranha ao racismo sofrido durante um jogo, Pelé disse que o santista se precipitou. Segundo Pelé, se ele tivesse parado todo jogo em que algum torcedor o chamasse de “macaco” ou “crioulo”, teriam que ser interrompido todos os jogos de que ele participou.
De acordo com Angélica Basthi, o fato de ele ter reconhecido ter sofrido ofensas raciais em campo é um ponto de inflexão em sua trajetória.
“Pelé passou a vida negando que tivesse sofrido racismo. É a primeira vez que admite ter sido chamado vários vezes de macaco ou de crioulo em campo”, afirma a pesquisadora. “Pode-se dizer que é um pequeno avanço contar com esse reconhecimento do Pelé no debate sobre o racismo no futebol, ainda que o contexto utilizado por ele não contribua com a luta por igualdade racial. Mais uma contradição resultado do racismo produzido em nosso país.”
Racismo na carne
De acordo com a pesquisa de Angélica, Pelé teve sua primeira experiência com o racismo ainda adolescente, em Bauru, quando começou a namorar uma garota branca. Assim que o pai dela soube do namorico da filha com um menino negro, deu uma surra na garota em público. O relacionamento acabou ali.
Mais tarde, Pelé também enfrentou problemas quando conheceu aquela que seria sua primeira esposa, Rosemeri, branca. “O jovem casal estava proibido de ser visto junto e a sós. Até para irem ao cinema, uma pessoa da família dela os acompanhava. Era uma situação estranha: primeiro chegava Rosemeri, acompanhada de um parente, para a sessão no cinema; só depois de começado o filme, Pelé era autorizado a entrar também. O namoro durou sete anos”, conta a pesquisadora. Ela levanta duas hipóteses para isso. “Ou queriam proteger a filha do assédio por estar se relacionando com um craque famoso, ou tinham dificuldade de aceitar o relacionamento com um jovem negro, ainda que tivesse fama.”
Um dia, durante uma excursão do Santos pela África, Pelé presenciou um momento de tensão racial. No Senegal, a recepcionista branca do hotel onde o time se hospedou chamou de selvagens os negros que tentavam se aproximar dos santistas.
Um policial acabou prendendo a mulher. Ela alegou inocência e pediu para que Pelé testemunhasse a seu favor. O jogador se recusou a defendê-la e disse que se identificava com as pessoas que ela havia insultado. “Estar na África foi ao mesmo tempo uma lição de humildade e uma experiência gratificante. Senti que representava uma esperança para os africanos, como o negro que conseguiria fazer sucesso no mundo”, escreveu Pelé em sua autobiografia publicada em 2006.
Racismo na Copa
A preparação da seleção brasileira para a Copa de 1958 foi marcada pela sombra dos fracassos nos dois Mundiais anteriores. Entre todos os diagnósticos para as derrotas em 1950, em casa, e em 1954, na Suíça, destacava-se a retomada de teorias racialistas em voga no Brasil desde os anos 1930. De acordo com setores da academia, da ciência e da imprensa, a fraqueza da seleção brasileira eram os jogadores negros e mulatos, supostamente menos maduros e disciplinados do que os europeus.
Foram os jogadores negros os mais responsabilizados pelo Maracanazzo em 1950 e pela derrota em 1954, depois de uma pancadaria nas quartas de final com os húngaros. De acordo com essa interpretação, negros e mulatos não teriam “fibra” nem sangue-frio para suportar pressões como essas.
Os cartolas responsáveis pela seleção queriam tudo diferente em 1958. Uma comissão técnica formada por médicos e psicólogos elaborou um parecer “científico” que ajudou o técnico Vicente Feola a montar o time titular para a estreia no Mundial da Suécia.
Entre os 11 que entraram em campo contra a Áustria, apenas um não era branco, Didi (tanto porque ele era o craque do time, como porque seu reserva imediato, Moacir, também era negro). Os outros negros e mulatos da seleção foram empurrados todos para a reserva: Pelé, Garrincha e Djalma Santos entre eles.
Eles só voltaram ao time de cima no terceiro jogo, contra a União Soviética, quando o treinador precisava da vitória e resolveu botar em campo os melhores jogadores e não os mais claros. Pelé e Garrincha, como se sabe, foram a sensação daquele Mundial. E jamais perderam uma partida juntos até 1966.
“O talento e a trajetória do Pelé foram fundamentais para arrancar o espaço e o reconhecimento para o negro no futebol brasileiro, mesmo que ele nunca tenha se envolvido diretamente no combate ao preconceito racial”, diz Angélica Basthi.
O discurso de Pelé sobre racismo é, e sempre foi, parecido com o de muitas pessoas de sua geração: o da negação. Ele diz que ao ouvir um xingamento racista vindo das arquibancadas, preferia ignorá-lo, como se não falar de um problema ajudasse a acabar com ele. Mesmo que ele tenha contribuído para a valorização do jogador negro no futebol através de sua trajetória pessoal, ele sempre foi cobrado a ter uma postura mais crítica e militante no combate ao racismo, o que nunca aconteceu.
É o oposto do discurso e da postura de Aranha, que, como muitas pessoas de sua geração (negras e brancas), preferem o enfrentamento duro de um problema que os afeta diretamente.
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