20 anos após acidente que mudou sua vida, Osmar Santos fala em conta-gotas
Hoje faz vinte anos que Osmar Santos não fala uma frase completa sem sobressaltos.
Seu raciocínio continua afiado, tão afiado quanto no tempo em que ele era um dos narradores mais conhecidos do Brasil, tão afiado quanto no tempo em que conjurava bordões que marcaram a história da crônica esportiva, tão afiado quanto no tempo em que seus discursos o tornaram a voz oficial da abertura política do país.
Mas desde o dia 22 de dezembro de 1994, desde o grave acidente que machucou justamente a parte de seu cérebro responsável pela comunicação, os lábios de Osmar Santos não acompanham seu pensamento rápido.
Ele pensa em enxurrada, mas fala em conta-gotas.
Uma entrevista com ele é quase uma sessão do jogo da mímica. Você faz uma pergunta, e a resposta vem resumida em uma ou duas palavras-chaves misteriosas.
“Você continua acompanhando futebol?”, pergunta a reportagem.
“Penalty. Gorduchinha”, ele responde.
Com um pouco de contexto fica fácil deduzir o que ele quer dizer. Um dia antes da entrevista, a Penalty anunciara que a bola batizada de Gorduchinha, apelido imortalizado por Osmar, será usada no Campeonato Paulista de 2015. O ex-narrador sorri empolgado, confirmando a dedução. “Penalty, gorduchinha”, ele repete. “Gol!”
***
Mas às vezes não é tão simples assim.
Quando não se consegue fazer entender, Osmar pede a intercessão de Toninha, sua assistente pessoal, que trabalha com ele há quase uma década. Eles se veem todos os dias, e ela o entende mais do que a própria mãe dele, Clarice.
Toninha quase sempre é capaz de interpretar com sucesso as palavras-chaves de Osmar. Mas quando nem ela consegue, é preciso escrever o conceito em um papel. Depois disso, as mímicas se tornam mais frequentes. Quando ainda assim não o compreendem, Osmar apela aos universitários.
Ou, no caso, a amigos que ele alcança pelo celular.
Por exemplo, quando Osmar quer comunicar que em tal dia ele vai almoçar com seu amigo Botafogo (alguns dos amigos ele chama não pelo nome, mas pelo clube do coração), ele disca a Botafogo e passa o telefone ao interlocutor. O amigo do outro lado da linha explica quando será o almoço, o que eles vão comer, de que assunto irão tratar...
É como se os amigos de Osmar, por um momento, virassem o próprio Osmar, ajudando-o a superar as limitações da comunicação, falando por ele, sendo a voz que ele não consegue conjurar.
Na casa de Osmar Santos não se joga conversa fora, porque lá as palavras são um item raro, precioso. Cada palavra, cada significado, leva a outra palavra e a outro significado. Percorrendo a cadeia lógica que se forma entre eles, você tenta (e quase sempre consegue) conversar com o ex-narrador.
Eu faço alguma pergunta com meu sotaque carregado na letra S ao final de uma palavra. Osmar pula do sofá e pergunta: “Rio?” Respondo que não sou carioca, mas nasci em Belém do Pará.
O olhar de Osmar Santos se ilumina e ele começa a sorrir. “Fafá. Música.” Osmar e a cantora Fafá de Belém foram personagens centrais dos comícios das Diretas Já.
Ele leva o dedo aos lábios. Seu pensamento sai como uma correnteza que se vê obrigada a passar pela estreiteza de um funil: “Música. Diretas. Fafá. Lula. FHC. Ulysses [Guimarães]. Viagens. Sul. Norte.”
Uma longa história contada em fragmentos de sentido
Clarice, sua mãe, que vive com ele durante dois ou três meses por ano, lembra ainda emocionada do dia em que o filho falou pela primeira vez a palavra mexerica depois do acidente. Foi um pouco antes de Osmar, sem aviso, decidir que conseguia descascar e comer a fruta sem ajuda de ninguém – uma vitória inesquecível para quem perdeu quase todos os movimentos do braço direito e sempre foi destro.
Com o tempo, Osmar precisou reaprender a fazer tudo apenas com a mão esquerda. Amarrar o cadarço, abotoar a calça, abotoar a camisa, tomar banho, tomar banho de mar, escrever seu nome, pintar quadros... Cada avanço era uma felicidade que ele não consegue descrever (quem conseguiria?).
Clarice lembra que chorou no dia em que, meses depois do acidente, o filho apareceu na sala do apartamento caminhando. Foi um acidente tão grave que muitos acreditaram ter sido um milagre só o fato de Osmar não ter morrido.
“Eu tinha pedido a Deus para Ele me levar no lugar do meu filho”, disse ela. “Mas quando vi meu filho caminhando de novo, aqui mesmo nesta sala, agradeci a Deus por ter me permitido vê-lo de pé outra vez.”
A vida tem sido generosa com Osmar Santos, a julgar pelas várias gargalhadas que ele solta em uma hora e meia de entrevista. Sua agenda está tão ou mais movimentada do que na época em que trabalhava narrando futebol. Suas obras estão expostas em várias galerias da capital e do interior de São Paulo.
Seus filhos estão felizes, orgulhosos do pai que têm. Seus amigos o convidam para almoços e jantares, e não tem dia em que ele passe mais tempo em casa do que na rua, indo ao shopping, a salas de cinema, teatros, viagens e visitas a amigos.
Em vários sentidos, ele aprendeu um novo jeito de viver.
Mas algumas coisas permanecem as mesmas de 20 anos atrás. Osmar Santos é um homem à moda antiga. Prefere ouvir jogos no rádio a vê-los na TV. Pinta quadros de árvores, periquitos, peixes, nada muito moderno, nada muito abstrato.
Não costuma acessar a internet – torce o nariz quando digo que trabalho para um portal. Usa o celular com frequência, mas diferentemente da maioria das pessoas que usam celular hoje em dia, não faz ligações procurando nomes na agenda do aparelho: ele digita o número de cada amigo. Ou seja, sabe de cor o número de seus melhores amigos.
Ele também não perdeu a capacidade de criar bordões. Quem convive muito com ele começou a usar com frequência uma palavra que não sai de sua boca, uma palavra que já virou uma espécie de certeza nas conversas com Osmar Santos. Um verbo no passado, mas que significa uma vontade de futuro. Três letras que não são apenas o comunicado de um desejo, mas o anúncio de uma decisão.
Quando está entediado, quando está cansado, quando o assunto acaba ou quando ele apenas quer ir embora, Osmar Santos diz simplesmente: “Fui.” E, simplesmente, vai.
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