Topo

Xandão conta como é jogar em meio à guerra e ser vizinho do exército russo

Danilo Lavieri

Do UOL, em São Paulo

04/02/2015 06h01

Entre uma cabeceada e outra durante o treino, um soldado caindo de paraquedas no terreno vizinho, proteção do exército em determinadas viagens e a dificuldade de não conseguir entender nem a televisão. Assim é a vida de Xandão, zagueiro do Kuban Krasnodar que deixa todos os problemas de lado para realizar o sonho de ser vencedor na carreira de jogador de futebol.

Aos 26 anos e morando com a mulher na Rússia, o ex-São Paulo, Fluminense, Atlético-PR e Sporting, de Portugal, ele enfrenta as dificuldades de atuar em um país que vive em constantes problemas de conflitos civis, especialmente quando a partida é disputada perto da fronteira com a Ucrânia, país que sofre com intervenção militar russa.

Em entrevista ao UOL Esporte, Xandão revelou que nunca teve nenhum problema diretamente com a violência e mostrou felicidade por superar os problemas diariamente e poder atuar na Rússia, onde o objetivo de sua equipe é buscar ao menos uma vaga nas competições continentais. Para isso, é preciso ficar entre os cinco primeiros. Atualmente, a equipe está em 8º a quatro pontos do 5º, o Lokomotiv Moscou. Falta praticamente um turno inteiro para ser disputado. 

O jogador ainda revela outras dificuldades de atuar tão longe do Brasil e lamentou por ver uma Copa do Mundo sendo organizada de uma maneira bem mais profissional do que a que foi em sua terra de origem. Xandão ainda relembrou o golaço de sua carreira, quando fez o gol de calcanhar para que o Sporting derrotasse o Manchester City na Liga Europa de 2012, que você pode ver no fim desta reportagem. 

Confira a entrevista de Xandão ao UOL Esporte:

UOL Esporte: Quais são as principais dificuldades de morar e trabalhar na Rússia?
Xandão
:  Na Rússia, tem bastante coisa que influencia. Além do frio, que é rigoroso e às vezes faz a gente ficar com 20 centímetros de neve e termômetro negativo, tem a língua que é muito complicada. Já estou há dois anos aqui, mas como no clube a gente tem um tradutor, eu acabo não aprendendo muita coisa. Hoje, consigo falar normalmente se o assunto for futebol. Num restaurante, eu me viro também, sei pedir o que quero, mas tirando isso... Às vezes, aqui , bate uma solidão, mas eu resolvo trazendo amigos e família.

UOL Esporte: E comida? A culinária da Rússia é boa?
Xandão:
A carne vem aí do Brasil e fica muito cara. Mas eu não deixo de comer. Como menos, mas como, porque pesa muito no bolso. E eu também vou muito a restaurantes por aqui.

UOL Esporte: Então ouvir rádio, ver televisão são tarefas difíceis...
Xandão
: Risos! Eu não consigo entender nada! Mas eu ligo a TV para ver imagens. Mas ultimamente aqui é só conflito. Conflito e guerra a toda hora.

28.jan.2015 - Soldados ucranianos do batalhão de voluntários de Donbass realizam nesta quarta-feira uma operação para expulsar separatistas pró-Rússia de uma vila da região de Lugansk (no leste da Ucrânia). Pelo menos 16 civis morreram e 114 ficaram feridos por bombardeios de artilharia e disparos de mísseis nas últimas 24 horas em Lugansk, segundo informações de separatistas - Anatoli Boiko/ AFP - Anatoli Boiko/ AFP
"Em algumas regiões da Rússia, quando vamos jogar, recebemos proteção do exército, do governo local. Na região Chechênia, por exemplo, a gente tem proteção especial", afirma Xandão
Imagem: Anatoli Boiko/ AFP

UOL Esporte: E como é viver em um país que tem esse problema constante?
Xandão:
É muito triste. Ficamos vendo essa situação e é bem ruim. Mas para o futebol, não muda muito. Isso não tem me atrapalhado. A gente vive em uma cidade não tão longe da Ucrânia, mas é relativamente isolado. Esse negócio de conflito não atinge tanto a população e isso afeta pouco.

UOL Esporte: Mas dá para levar vida normal? Sem se preocupar com nada?
Xandão
: Em algumas regiões da Rússia, quando vamos jogar, recebemos proteção do exército, do governo local. Na região Chechênia, por exemplo, a gente tem proteção especial. Todos os clubes têm isso. Passamos por revista de ônibus, escolta no trajeto, eles cercam o hotel que estamos, coloca fita para todo o lado. A ideia é isolar a gente mesmo.

UOL Esporte: Na sua cidade, então, você quase não vê problemas?
Xandão:
A minha cidade esta muito próxima da Ucrânia e é uma das principais cidades da região. Tem uma base do exército enorme, bem em frente a gente. A gente vê treinamento e movimentação em quase todos os dias da semana. São aviões passando bem baixinho a toda hora, soldados pulando de paraquedas e tudo isso no terreno vazio. É uma situação curiosa cabecear uma bola e ver um soldado caindo de paraquedas. Mas isso é só uma base de treinamento mesmo.

Assim que chegou, Xandão foi capa da revista oficial do clube - Divulgação/Arquivo Pessoal - Divulgação/Arquivo Pessoal
Assim que chegou, Xandão foi capa da revista oficial do clube
Imagem: Divulgação/Arquivo Pessoal

UOL Esporte: Você já sofreu com algum tipo de violência? Já pensou em largar tudo?
Xandão
: Nesses dois anos que eu estou aqui, graças a Deus não teve nenhum momento complicado, que eu não quisesse estar aqui. Apesar da distância, nesse período que eu estou aqui, Deus tem cuidado da minha família.

 

UOL Esporte: E o futebol na Rússia? Está em qual nível perto do Brasil e da Europa?
Xandão:
Não se compara em termos táticos. Mas nos dois anos que estou aqui eu senti uma evolução. Acaba sendo abaixo do restante da Europa, mas é um campeonato que tem crescido muito. Tem evoluído com treinadores estrangeiros e também com a chegada da Copa do Mundo por aqui.

UOL Esporte: E a preparação como está? Há atrasos como no caso do Brasil?
Xandão:
É triste falar isso porque sou brasileiro, mas é muito diferente. Em termos de preparação, eu vejo uma evolução muito maior. No momento, já temos dois estádios prontíssimos para sediar, acho que um do Spartak e um do Rubin Kazan. Eles já estão prontos e foram construídos do zero só para sediar a Copa. Faltam 10 estádios, mas todos já estão em estado avançado. Difícil de admitir, mas a organização aqui vai dar um show comparado com o Brasil.

UOL Esporte: Há uma história curiosa que você teve suspeita de tuberculose. Como foi isso?
Xandão:
Na verdade, foi assim... (risos). Eu dou risada agora porque foi um mal entendido, mas na hora foi um sufoco. Eu cheguei aqui para me apresentar para a pré-temporada e fiz todos os exames. Em um deles, na hora de tirar a chapa do pulmão, o doutor do clube me chamou e falou que iria ter de repetir, porque tinha suspeita de tuberculose. Era uma mancha branca enorme no meu pulmão. Ali eu gelei, fiquei apavorado por dentro. Lembrei da história do Thiago Silva, que também enfrentou esse problema. Não sabia o que falar, o que falar para a minha família. Me passou o filme na cabeça. Mas tirei a chapa nova e não era nada. Foi um susto muito grande.

UOL Esporte: Lembro de um golaço seu de calcanhar contra o City. É o mais bonito da carreira?
Xandão
: Pode confirmar, mas confirma por bem pouco. Eu quase fiz um golaço de bicicleta aqui, e o goleiro foi buscar no ângulo. É que não peguei bem na bola, mas esse seria o mais bonito sem nenhuma dúvida. Mas o gol contra o City abriu muitas portas para mim e fez o meu nome. Na janela seguinte, logo teve essa proposta ótima da Rússia.