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Brasileira revela falsidade de Havelange e prisões pra virar 1ª árbitra

Luiza Oliveira

Do UOL, em São Paulo

20/05/2015 06h01

O amor pelo futebol fez Léa Campos virar um grande exemplo de coragem. Uma pioneira que entrou para a história. Com muita determinação, ela se tornou a primeira árbitra de futebol do mundo ainda na década de 60. Nem a ditadura, nem o preconceito em um meio tão machista, nem a repressão do Dops, nem as brigas com João Havelange foram capazes de derrubá-la.

Ao contrário. Léa é daquelas pessoas teimosas, que acha que quanto mais difícil melhor é o desafio. “Foi uma luta muito grande, mas consegui”.

O amor pelo futebol surgiu de forma despretensiosa. Começou ainda criança aos oito anos de idade quando seu pai construiu uma bola feita de trapos que virou seu brinquedo predileto, algo inapropriado para a época. Léa foi crescendo e a repressão não vinha mais dos colegas de escola e dos professores. A ditadura imperava no país e era proibido mulher jogar futebol. Volta e meia, os policiais do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) apareciam nos campos de várzea para acabar com a festa.

“Fui presa várias vezes por causa de futebol feminino, por jogar futebol. Não estava respeitando a constituição que proibia mulher de jogar futebol. A gente estava jogando normalmente em campo de várzea, quando vinha o camburão da Federal. Eu falava com as meninas: ‘pode correr que os homens já chegaram’. Eu dizia que não era para levar todo mundo, que a responsável era eu. Eu só perguntava: ‘vai me algemar com as mãos para trás ou com as mãos para frente?’. Me levaram tantas vezes que fiquei amiga do delegado”.

Depois de mais de 15 prisões que ela contabiliza, Léa se cansou. Foi aí que decidiu ser árbitra de futebol, já que a constituição não dizia nada sobre o apito. Em 1967, ela resolveu fazer um curso de oito meses na Escola de Árbitros da Federação Mineira de Futebol. Com o diploma nas mãos, poderia exercer livremente a profissão, mas encontrou um empecilho maior ainda que os policiais.

Léa Campos foi a primeira árbitra de futebol do país - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Imagem: Arquivo pessoal

O então presidente da Confederação Brasileira de Desportos e futuro presidente da Fifa, João Havelange, não aceitava lhe conceder o título. Começou aí uma luta de quatro anos em que cada encontro com seu maior desafeto virara um capítulo à parte na novela.

Segundo Léa, o mandatário usou várias desculpas como afirmar que as mulheres não tinham condições físicas suficientes para apitar um jogo. Ela chegou a procurar um médico que provasse o contrário. Até o ciclo menstrual feminino virou assunto.

“Ele falou assim: ‘E quando você estiver naqueles dias, como você vai apitar futebol? Se sujar a roupa, será um vexame’. Eu falei ‘Oh Havelange, você é campeão de natação no Fluminense. Como as suas coleguinhas nadam quando estão nesses dias especiais que o senhor acabou de mencionar?. Isso não vai acontecer porque eu vou me proteger muito bem. Alguma vez alguma colega lá sua vazou na piscina? E não vai me dizer que molhar não é bem mais perigoso que correr?’”.

“Ele cruzou os braços: “olha aqui, Láa. Tem quatro anos que você está azucrinando a minha cabeça para ser árbitra de futebol. Então eu vou te falar uma coisa. Enquanto eu for presidente da CBD, mulher não joga e nem apita futebol. Sabe por que? Porque eu quero”.

Léa não se deu por vencida mesmo com a negativa do homem mais forte do futebol brasileiro. A situação virou combustível para desafiá-lo. A única saída era procurar uma autoridade ainda mais forte: o militar e então presidente do país Emílio Garrastazu Médici, considerado um dos representantes mais linha dura da ditadura.

Léa tinha pressa porque havia recebido um convite da Fifa para apitar um jogo do Mundial de futebol feminino no México. Então teve a ideia de procurar um comandante do Exército e pedir que conseguisse uma audiência com o presidente. Depois de muita insistência, ele a recebeu para um almoço na Granja do Torto, em Brasília.

“Cheguei em Brasília, direto para a Granja do Torto. Eu estava super nervosa e só lembrava da única coisa que meu pai falou. “Você pode comer tudo o que ele comer, mas não tome nada”. Terminamos de comer, ele pediu ao assistente para trazer um bloco e uma caneta. Contei a história toda e ele fez a carta. Pode ter sido por vaidade do Médici para mostrar que ele era superior, pode ter sido para mostrar que o governo militar não era tão duro quanto parecia. Não sei qual foi o motivo, mas fato é que ele me ajudou. Se não fosse por ele, não estaria aqui hoje”.

Ao receber a carta escrita por Médici, João Havelange mudou completamente sua postura. Prontamente, mandou reunir a imprensa para uma coletiva e anunciou. “É com muita honra e orgulho que levo ao conhecimento do mundo que é na minha gestão que sai a primeira mulher árbitra de futebol profissional para todo o mundo futebolístico”. Léa ainda se irrita ao lembrar do episódio “Falso! Pior que uma nota de 3 cruzeiros”.

Com a liberação, ela apitou o jogo feminino no México e passou a ser árbitra do futebol masculino. Trabalhou em 19 jogos de um torneio do Portugal e em quase todos os estados do Brasil.

Mesmo trabalhando em jogos masculinos, ela era muito respeitada. “Quando eu entrava em campo, me chamavam de bicha. Eu não dava bola. Mas nunca me chamaram de filha da p..., essas coisas nunca aconteceram comigo. Igual hoje você vai ao estádio e é cada palavrão que gritam, minha mãe nunca foi ofendida num campo de futebol, graças a Deus”.

Mas, apesar do esforço, sua carreira foi relativamente curta porque em 1974 ela sofreu um grave acidente de ônibus em que quase perdeu uma das pernas.

Mas não deixou de trabalhar. Ela foi jornalista esportiva, relações públicas do Cruzeiro e ainda pode se gabar de acumular títulos em concursos de beleza. Foi Rainha do Carnaval, Miss Objetiva, Rainha do Exército, Rainha do Cruzeiro, Rainha dos Combatentes, Rainha do Futebol Amador.

“Me convidavam para entrar no concurso e eu entrava, achava aquilo legal, não estava me depreciando por causa daquilo, não tinha que ficar pelada nem nada. Tenho várias faixas e coroas. Eu era realmente muito bonita, modéstia à parte. Meu pai dizia que eu ‘você é o galo da minha cabeça’. Era bastante, muito assediada”.

Hoje, aos 70 anos, ela mora em Nova York onde dá aula em escolas de arbitragem, faz palestras, participa de eventos esportivos e ainda tem uma coluna em um jornal brasileiro editado nos Estados Unidos.

Léa esteve na última terça-feira em São Paulo para ser homenageada na inauguração da ala feminina do Museu do Futebol, no Pacaembu, e pôde relembrar todas as suas histórias. Mas, apesar de orgulhosa da carreira e dos caminhos que abriu para as mulheres, não está muito satisfeita com o rumo que algumas delas tomaram no apito.

“E o que eu acho das mulheres hoje? Eu acho que algumas estão prejudicando porque buscaram a arbitragem apenas como vitrine holandesa, algumas confundiram as coisas, usaram o futebol para galgar outras coisas. Tem gente que posou pelada para a Playboy, a outra usa um shortinho que aparece tudo. Isso está prejudicando as que querem fazer um trabalho sério. Nós precisamos de mil Silvias Reginas (ex-árbitra) no cenário arbitral brasileiro, e não precisamos de nenhuma Ana Paula (ex-bandeira)”.