Futebol é coisa do diabo? Eles acham que sim
Há quem acredite que futebol faz mal, e não estamos falando de contusões. Diversos sites de pastores e igrejas pregam que o esporte vai contra os preceitos do verdadeiro cristão. Em alguns casos, chegam a dizer que é coisa do satanás.
“Deus abomina o futebol e seus adoradores... fãs... torcedores... fanatismo... todos no caminho do inferno”, diz o pastor Maurício Cerqueira em seu blog. "Nós sempre falamos contra o futebol e mostramos a sua verdadeira face", diz "O Correio de Deus". Já para a Igreja da Fé Apostólica, "o futebol é incompatível com a santidade requerida pelo Altíssimo ao Seu povo".
Alex Villas Boas, professor de antropologia teológica da PUC-SP, acredita que tais crenças partem de interpretações descontextualizadas de passagens bíblicas. Além disso, para o estudioso, futebol e religião têm muito mais em comum do que se imagina. Ambos, no final das contas, serviriam para dar sentido à vida.
“Futebol satânico”
Um dos que pregam contra o futebol é o pastor Maurício Cerqueira. Em “A origem do futebol satânico”, ele cita uma série de passagens bíblicas que justificariam a ojeriza ao futebol, os vídeos “Futebol, Ópio do Povo” e “Futebol Illuminati” e o aviso aos amantes do futebol mencionado no início da reportagem.
Cerqueira, porém, não se restringe aos boleiros e torcedores: “Quantos ´pastores` amantes do futebol... Quantos que se diziam crentes e já ardem no inferno sem ter mais como se arrepender... Jogador, ídolo do mundo... Adorado, idolatrado e ao mesmo tempo odiado por rivais, feiticeiros de mente e bruxos que são a totalidade dos torcedores e fanáticos".
Além de mais um vídeo, agora sobre maçonaria e futebol, e um resumo da história do esporte com as suas maiores tragédias, você encontra também o seguinte comentário destacado em azul: “Diz o senhor: vou destruir o Maracanã". Na sequência, acima de vídeo que mostra o acidente no Estádio da Fonte Nova que deixou sete mortos em 2007, lê-se a pergunta: “Será que será em um dia de jogo?”
Em meio a outras citações bíblicas que surgem aqui e ali para, teoricamente, validar as posições do pastor Cerqueira, há pequenas curiosidades como a reprodução de uma figurinha do ex-ídolo corintiano Marcelinho Carioca (“outro que gosta de se travestir de crente”) e uma sequência de imagens que ilustram como o futebol desvirtuaria as mulheres (confira no álbum).
Ao ser questionado pela reportagem sobre o conteúdo de seu site, Maurício Cerqueira respondeu que não se tratava de uma opinião pessoal. “Eu não dou opinião. Aprendi isso. Opinião é presunção. O que eu faço é interpretar passagens bíblicas. E eu entendo tudo da Bíblia. Eu mastigo a Bíblia. O senhor fala pela minha boca”, disse o pastor.
De fato, ao ser perguntado sobre o ponto central da reportagem – se, afinal, o futebol seria ou não coisa de Deus -, Maurício volta a se apoiar em passagens bíblicas. “O amor do mundo está em Deus. O futebol é um antro de idolatria”, argumenta o pastor, que volta a reforçar: “Pastor que gosta de futebol não é um homem de Deus”. E vai mais longe. “São esses mesmos pastores que pedem palmas em suas pregações. Deus abomina palmas”.
Cerqueira diz que, apesar de já ter frequentado várias igrejas, nunca ficou muito tempo em uma porque “é um pastor sem igreja e rejeitado por todos” por “falar as verdades”. “O povo gosta de ser enganado”, continua o pastor, que tem pregado via internet.
“Tudo é manipulado”
Tão incisivo quanto a página do pastor Cerqueira é o site “O Correio de Deus”, que fala sobre o “futebol satânico illuminati”. “Isso não é novidade para os leitores do site O Correio de Deus tendo em vista que nós sempre falamos contra o futebol e mostramos a sua verdadeira face, coisa que poucos têm coragem de fazer por medo das represálias sofridas feitas por fanáticos ao esporte. O futebol é uma verdadeira máquina de ganhar dinheiro, e muitos ainda não entendem o que este ‘jogo` significa. Tudo é comprado, tudo é manipulado, tudo é traçado para que o público fique a cada dia mais fanático por esse esporte.” Mantido por um grupo de colaboradores e editores, o site tem uma vasta coleção de matérias sobre “satanás”, “anticristo” e como o homossexualismo seria sustentado pela mídia. A reportagem do UOL Esporte tentou contato com dois de seus editores, mas não obteve retorno.
Também há casos em que igrejas sustentam posições contra o futebol. No portal da Igreja Assembleia de Deus Ministério Restauração, de Porto Alegre (RS), por exemplo, é possível encontrar a história de Cristian Jaderson Souza. O jovem, que na época do relato (2007) teria 20 anos de idade, conta que “deixou o futebol para seguir a Cristo”.
Trocou o futebol por Cristo
“Eu era um jovem apaixonado pelo futebol. Porém, uma grande experiência que eu tive com Deus mudou a minha vida. Dentro do futebol, Deus começou a falar comigo dizendo que aquela prática era errada”, diz Cristian em seu relato.
“Com meu coração perturbado, comecei então a pedir a Deus que me desse uma direção. Perguntava ao Senhor se o futebol o agradava ou não.”, segue Cristian. “Então, Deus começou a provar-me. Percebi isso quando eu falei para um jovem que jogava juntamente comigo sobre o que estava escrito na Bíblia: Não ameis o mundo, nem o que no mundo há. Se alguém ama o mundo o amor do Pai não está nele; porque tudo que há no mundo, a concupiscência da carne, a concupiscência dos olhos e a soberba da vida, não procede do Pai, mas procede do mundo. Ora, o mundo, passa bem como a sua concupiscência; aquele, porém que faz a vontade de Deus permanece eternamente. (I Jo 2.15-17) Tendo ouvido essas palavras, aquele jovem disse-me: Então você não pode jogar futebol, porque o futebol é mundano!”. Cristian diz ter recebido proposta até para jogar no Cruzeiro, se machucado e se tornado usuário de crack por um período.
Questionado se a Assembleia de Deus Ministério Restauração de fato apoia a posição divulgada em seu site, Plauto Vanzin, pastor da igreja, diz que “nenhum membro de nossas centenas de igrejas é forçado ou obrigado a fazer nada. A escolha deste jovem foi produzida por um sentimento puramente divino, tomou a decisão baseada em uma experiência pessoal com Deus, nosso Criador.”
Vanzin, porém, admite que, quando se trata de “esportes competitivos” como o futebol, a igreja vê “sérios problemas”. “(o esporte competitivo) produzirá um ganhador e, por consequência, o perdedor. Nisto irá surgir um sentimento de perda, frustação e desejo de revanche, que proporcionará também um desejo de disputa”, justifica o pastor. “Existe também a questão da idolatria. A Bíblia apresenta um conceito ampliado de idolatria como sendo não somente a devoção a imagens como as de deuses, mas qualquer coisa que ocupe o lugar central no coração de uma pessoa. No futebol existem estas coisas, o jogador torna-se um ´ídolo`, há quem já recebeu o cognome de ´fenômeno`, diz Plauto.
“Temos outros casos de irmãos que deixaram a carreira de jogador de futebol profissional para realmente tornar-se um verdadeiro cristão. Nenhum desses foi obrigado a tal posicionamento, até porque a Constituição Brasileira garante o direito de ir e vir sem impedimentos”, completa o pastor.
“A Santidade Cristã Condena Definitivamente o Futebol aos Crentes em Jesus”. Essa é a posição da Igreja da Fé Apostólica. A instituição, que em seu site divulga um endereço de Cubatão (SP), também não respondeu aos pedidos de entrevista. A igreja alega, entre outras coisas, que “é impossível ser santo e andar de mãos dadas com o futebol. Não existe a possibilidade de haver concordância do futebol com a santidade cristã. Assim como água e óleo não se unem, luz e trevas não se encontram — o futebol é incompatível com a santidade requerida pelo Altíssimo ao Seu povo.”
Mais em comum do que se imagina
Professor de antropologia teológica da PUC-SP, Alex Villas Boas vê tais posições como um “reflexo da experiência afetiva de quem as profere”. Em outras palavras, ao interpretar uma passagem bíblica como sendo negativa em relação ao futebol, uma pessoa embute ali seus desejos, anseios e afetos pessoais. Além disso, acredita o professor, futebol e religião têm muito mais em comum do que se imagina. “A vida, em si, é absurda. Estamos sempre procurando darmos uma razão a ela. Nesse sentido, tanto o esporte quanto a religião cumprem com esse papel”, diz Alex.
Outro ponto levantado pelo professor é a descontextualização das passagens bíblicas.
“Um texto fora de contexto vira pretexto. E, nisso, o repertório cultural de quem o lê faz diferença. Dependendo da sua formação e visão do mundo, você já vai lê-lo predisposto a interpretá-lo de uma determinada maneira”, explica Alex, que completa: “o esporte não tem nada a ver com destruir os adversários. Essa é uma leitura equivocada. O esporte tem a ver com saúde, com o desenvolvimento da medicina e, portanto, com a vida. Por isso, a princípio não faria sentido uma religião ser contra o esporte.”
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