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Gandhi criou times de futebol para combater o racismo. E bem longe da Índia

Gandhi usou o esporte contra a desigualdade na África do Sul muito antes de Mandela - AP
Gandhi usou o esporte contra a desigualdade na África do Sul muito antes de Mandela Imagem: AP

Daniel Lisboa

Do UOL, em São Paulo

08/07/2015 06h00

Quando alguém fala em Mahatma Gandhi é inevitável não fazer uma associação à Índia. Bem antes de ajudar a libertar seu povo do domínio britânico, porém, o indiano teve papel importante na África do Sul. Se você não fazia ideia que o indiano também esteve por lá, provavelmente ficará ainda mais surpreso ao saber qual instrumento ele usou para combater as desigualdades locais: o futebol.  

Gandhi já foi um entusiasta do esporte. Aliás, não apenas isso: ele soube enxergar o potencial do futebol para influenciar uma sociedade. E olha que estamos falando do final do século 19, quando o então jovem indiano desembarcou na África do Sul para trabalhar como advogado.
 
Recém-chegado ao país, em 1893, Gandhi pegou um trem de Durban para Pretória e sentiu na pele a segregação aberta então vigente. Apesar de sua passagem lhe dar direito à primeira classe, Gandhi foi coagido pelo condutor a mudar para a terceira classe. O motivo: como hindu, ele deveria viajar juntos com os negros e não no compartimento exclusivo para brancos. Gandhi recusou-se a mudar, acabou expulso do trem e precisou passar a noite na estação de Pietermaritzburg. 
 
O indiano já tinha uma consciência social aguçada e o episódio só serviu para incentivá-lo a se posicionar contra o status quo sul-africano. Gandhi começou então uma campanha de desobediência civil entre a população hindu da África do Sul. Ali ele já começava a implantar sua filosofia de resistência por meio da não-violência e iniciava uma mudança na sociedade local que se tornou completa um século depois, com Mandela.
 
Mas e o futebol, onde entra nisso? Apesar dos esportes favoritos de Gandhi serem o críquete e o ciclismo, ele logo percebeu o poder de mobilização que o futebol tinha entre as classes mais baixas e decidiu usá-lo. O indiano criou três times, um em Durban, outro em Pretoria e mais um em Johannesburgo, e deu a todos o mesmo nome: “Passive Resisters Soccer Club”, ou algo como “Resistência Passiva Futebol Clube”.
 
Gandhi - Divulgação/Bessie Head Library - Divulgação/Bessie Head Library
Gandhi junto a um dos times do "Resistência Passiva Futebol Clube" em 1913
Imagem: Divulgação/Bessie Head Library
 
 
Esse curioso capítulo da história de Gandhi está relatado no site da Fifa.
 
De acordo com os historiadores consultados, não há evidências de que o próprio Gandhi tenha jogado por algum dos times ou bancado o técnico. Porém, ele falava aos jogadores sobre os princípios da resistência não violenta e aproveitava os jogos para distribuir panfletos sobre as consequências da segregação racial.
 
Se não há provas de que o indiano chegou alguma vez a entrar em campo e bater uma bolinha, o Old Court House, um museu de Durban, tem fotos em que ele aparece perfilado ao lado das equipes e discursando para o público em campos de futebol. Mas não ficou “só” nisso: historiadores relatam que as partidas dos times do Resistência Passiva Futebol Clube serviram também para que familiares de adeptos da resistência reclamassem contra suas prisões. Um deles teria acontecido entre as equipes de Johannesburgo e Pretoria em 1910, quando os jogadores protestaram contra a prisão de cerca de cem oposicionistas às leis de segregação locais. 
 
Usar o esporte como ferramenta para mudanças sociais muito antes de Mandela já é histórico. Mas consta que Gandhi é também uma espécie de pioneiro do “fair-play”.
 
É o que revela Poobalan Govindasamy, presidente da Associação de Futebol de Salão Sul-Africana, em seu depoimento ao site da Fifa. “Gandhi estava convencido de que o futebol tinha um enorme potencial para encorajar o jogo em equipe e, quando ele criou seus times, promoveu valores morais como espírito de equipe e fair-play”. 
 
Embora o Resistência Pacífica Futebol Clube nunca tenha atuado oficialmente em uma liga, para Govindasamy, o legado deixado por Gandhi para o esporte sul-africano é muito maior do que se imagina.
 
“Sua capacidade de organização ajudou na construção das estruturas esportivas não-raciais da África do Sul de hoje. Ninguém, naquele tempo, fez mais do que Gandhi e seus companheiros para envolver quem não era branco, principalmente a comunidade indiana local, em atividades esportivas estruturadas”. 
 
Um exemplo do que diz Govindasamy está na criação, em 1903, da Associação de Futebol Hindu da África do Sul. “Ainda faltava muito para uma nação unificada ideal como temos hoje, mas foi pavimentado o caminho para a criação de uma federação nacional e de ligas em que era possível jogar independentemente da cor da pele”. 
 
As experiências com o Resistência Passiva acabaram depois que Gandhi deixou a África do Sul, em 1914, para fazer história em sua terra natal. Seu legado, porém, continuou em fotografias, relatos orais e, principalmente, na semente contra a segregação plantada na África do Sul.