Após 23 anos, José Aparecido conta segredo e admite um erro na final de 93
Quase 23 anos se passaram desde um dos jogos mais marcantes da história de Palmeiras x Corinthians. A (segunda) final do Campeonato Paulista de 1993 e a goleada de 4 a 0 sobre o maior rival certamente não saem da cabeça dos torcedores alviverdes, da mesma forma que quase todos os corintianos que acompanharam a partida ainda questionam a polêmica arbitragem de José Aparecido de Oliveira, apontado como um dos ‘culpados’ pelo título palmeirense.
Depois de o Corinthians vencer o Palmeiras por 1 a 0 no jogo de ida, com direito a imitação de porco de Viola, os times voltaram a se enfrentar no dia 12 de junho de 1993, no estádio do Morumbi. O time de Luxemburgo precisava vencer para levar a decisão para a prorrogação, e Zinho tratou de colocar o Palmeiras na frente aos 36min do primeiro tempo. E ainda antes do intervalo, um lance entre Edmundo e Paulo Sérgio marcou a carreira de José Aparecido.
Provavelmente eu poderia ter expulsado (o Edmundo) se eu tivesse visto a falta num outro ângulo"
Edmundo partiu para cima do corintiano, perdeu a bola e, ao tentar recuperá-la, deu um carrinho violento em Paulo Sérgio na lateral, bem na frente de Oscar Roberto Godói, que estava como um dos assistentes da partida. Os corintianos pediram a expulsão do “Animal”, mas José Aparecido mostrou cartão amarelo. Edmundo continuou em campo e foi importante no jogo, provocando as expulsões do goleiro Ronaldo e do meio-campista Ezequiel e sofrendo um pênalti na prorrogação – cobrado por Evair e que praticamente garantiu o título alviverde.
Mais de 20 anos depois da histórica decisão no Morumbi, José Aparecido analisa o lance de outra forma. Ele admite o erro e reconhece, após ter visto o lance na TV por diversas vezes (e em outros ângulos), que Edmundo merecia ter recebido o vermelho. “Provavelmente eu poderia ter expulsado se eu tivesse visto a falta num outro ângulo, se eu tivesse visto o lance, tivesse no ângulo que me permitisse ver a expressão do Edmundo, da entrada que ele deu no Paulo Sérgio”, afirma o árbitro José Aparecido em entrevista exclusiva ao UOL Esporte na semana que antecede o mesmo clássico que será disputado pela primeira vez, desde então também no Dia dos Namorados.
Eu não tenho nada contra o Corinthians, é um time que eu até admiro bastante, os meus dois filhos são corintianos doentes"
A arbitragem do confronto mudou totalmente a vida de José Aparecido. Acusado de ‘roubo’ pelos corintianos, chegou até a ser ameaçado por torcedores e fez a família mudar de cidade nos dias que sucederam a partida. Em sua defesa, José Aparecido, hoje analisando tudo com mais calma, dá nota “7,5 a 8” para a sua arbitragem. “Os principais jogos que o Corinthians deveria ganhar para avançar às vezes perdia, e tinham que achar um culpado”, diz o ex-árbitro, que está com 64 anos, é advogado e, quando pequeno, sonhava ser goleiro.
José Aparecido x Corinthians
“Eu tive alguns problemas com os corintianos, mas eu sempre fiz questão de falar assim: ‘o Corinthians foi um dos times que mais ganhou comigo apitando’. O que aconteceu com o Corinthians e comigo é o que vem acontecendo agora: ganha, ganha, ganha e o jogo que precisa ganhar não ganha, aí alguém era culpado. Os principais jogos, que provavelmente o Corinthians deveria ganhar para avançar, ele, às vezes, perdia e tinham que achar um culpado. Eu não tenho nada contra o Corinthians, é um time que eu até admiro bastante, os meus dois filhos são corintianos doentes, doentes mesmo de ter chaveiro, boné, camisa, toalha... Algumas pessoas que passaram pelo Corinthians acharam que eu era o culpado. Ninguém chega a apitar várias finais que eu apitei, semifinal de Libertadores, eliminatórias de Copa do Mundo, sendo um péssimo árbitro. Agora, você condenar e colocar a responsabilidade de um jogo, de um título, em cima de uma pessoa, por um erro ou por dois erros, aí eu acho demais”.
Uma coisa que alavancou a minha carreira é que eu nunca tive medo de nada"
Qual o time de José Aparecido?
“Eu não torço para ninguém. Na realidade acho que isso de torcer para um clube já vem de berço. Quando a pessoa nasce, o cara que é corintiano, por exemplo, de pequenino já compra a camisa do Corinthians, boné do Corinthians para o filho acompanhar ele... Eu não, eu sou do interior de Taquaritinga, vim da roça junto do meu pai e da minha mãe, e meu pai detestava futebol, minha mãe idem, então eu aprendi a gostar de futebol jogando nos campos de várzea. O time que eu ia torcer lá da segunda divisão era o CAT, Clube Atlético Taquaritinga. Em 1978 eu vim de Taquaritinga para São Paulo e em 80 eu comecei a fazer curso de árbitro, então eu não tive nenhuma afinidade com clube grande. Para se ter uma ideia, nem rádio na minha casa eu tinha, então meu vínculo com o futebol foi nos campos de várzea... E depois que eu comecei a acompanhar direitinho, quando eu vim para São Paulo, só depois que eu estava há dois anos em São Paulo é que eu fui fazer o curso de árbitro”.
Acho o Neto hoje um excelente comentarista. É muito corajoso para dizer o que pensa. Ele teve a grandeza e a humildade de reconhecer que errou"
De goleiro da várzea a árbitro
“Tem uma coisa que eu nunca falei... Quando eu jogava futebol eu era goleiro, eu achava que seria famoso algum dia, entendeu? Eu tive uma experiência que eu passei no Guarani com o treinador Zé Duarte... Em 1970 para 71 eu fiz um estágio no Guarani de Campinas, e eu fiquei lá seis meses. Aí a minha mãe não deixou eu continuar com o futebol, fez com que eu voltasse para Taquaritinga e isso me frustrou. Depois eu fui embora para Fernandópolis, acabei jogando no Fernandópolis duas temporadas na segunda divisão. Depois eu fui para São Paulo e não deu para mim no futebol, eu já estava com a idade bem avançada e eu resolvi, como muitos jogadores, indo para a arbitragem. Então, como jogador eu achava que ia chegar, mas como árbitro não. Acabou sendo por acaso, sendo o inverso, e fiquei conhecido como árbitro”.
Pego de surpresa para apitar decisão
“O marco desta decisão foi o fato de eu ser pego de surpresa pra apitar o jogo. Não foi por sorteio, a semana toda tudo indicava – inclusive eu mesmo achava – que seria o Oscar Godoy que ia apitar. O primeiro jogo quem apitou foi o Dionísio Roberto Domingos, e eu achava que era o Godoy que ia apitar porque eu já havia apitado a final de 90 e a de 91. Em 93, em função do primeiro jogo, aquela presepada que o Viola fez de imitar o porco, o jogo ficou tido como jogo de risco, e como eu era um árbitro disciplinador, a FPF [Federação Paulista de Futebol] entendeu que eu era o árbitro que deveria apitar o jogo. A comissão de arbitragem da FPF era composta pelo Emídio Marques de Mesquita, Reinaldo [Carneiro Bastos] e pelo Gustavo [Caetano Rogério] se eu me lembro bem”.
“Eu fiquei sabendo que ia apitar a decisão no dia do jogo, entre 10h30 e 11 horas da manhã. Eu estava na sexta-feira, dia 11 de junho, na FPF, aí recebi um telefonema da minha ex-esposa dizendo que a comissão de arbitragem havia ligado na minha casa, que era para descobrir onde eu estava para eu ir embora para casa descansar e que no outro dia, dia 12 de junho, eu tinha que comparecer no restaurante. No outro dia fui para o restaurante, e lá fiquei sabendo que ia apitar. Eu fiquei muito feliz. Uma coisa que alavancou a minha carreira é que eu nunca tive medo de nada, então esse negócio de ficar ligando para o que vai acontecer e tal... Pelo contrário, me deixa mais aceso [risos]. Então nesta decisão não houve nem tempo para pressão”.
O polêmico carrinho de Edmundo
“Se eu tivesse visto o lance, tivesse no ângulo que me permitisse ver a expressão do Edmundo da entrada que ele deu no Paulo Sérgio... Porque quando o Edmundo deu a voadora ele estava de costas para mim... O que acontece? Todas as vezes que você vai marcar uma falta de um jogador, você não pode ver só a falta, porque, às vezes, ele não comete a falta, mas ele tem a intenção de cometer, e a lei é bem clara nisso, tendo ou não a intenção é falta. Então eu só vi o lance e o lance foi de frente para o Godói. Nós tivemos um agravante a mais porque o Paulo Sergio era um jogador que toda falta que sofria ele era espalhafatoso, como muitos fazem até hoje para ver se o árbitro expulsa ou se dá cartão amarelo. E ele era um cara conhecido por agir dessa maneira, então o Paulo Sérgio quis valorizar a entrada que o Edmundo deu nele. Então provavelmente eu poderia ter expulsado se eu tivesse visto a falta num outro ângulo”.
Godói poderia ter ajudado?
“Hoje o assistente tem praticamente por obrigação ajudar o árbitro, na época não era o caso. Por outro lado o Godói teve um respeito muito grande comigo, como eu teria com ele, porque a gente estava no mesmo nível, os dois eram árbitros da Fifa... E eu olhei para ele e ele só balançou a cabeça, o que ele quis dizer ao balançar a cabeça? Não pegou, e não pegou mesmo, não atingiu o Paulo Sergio... Então, com este gesto da cabeça dele de que não atingiu, me levou a não expulsar, eu entendi que o cartão vermelho seria muito grave ali”.
Sem clima para o dia dos namorados
“Quando eu cheguei em casa não tinha clima para nada, diante das circunstâncias do jogo não tinha clima pra nada. A minha ex não era muito fã de futebol... tanto eu ir bem como mal no jogo para ela era a mesma coisa. E a gente nem falou em namorar porque eu cheguei em casa mais de 9 horas da noite, eu tive que ficar no Morumbi, no vestiário, preso lá, e tive que sair escoltado. Saí de lá com o Morumbi praticamente vazio, então quando eu cheguei em casa só foi o tempo para tomar banho, jantar e dormir”.
Ameaças graves e problema de saúde
“Eu sofri várias ameaças. A minha família teve que sair de São Paulo pelo menos por uns dez dias, teve que viajar, porque causava medo, sabe? Tem louco aí para tudo, então deixou a gente um pouco assustado. Eu tive respaldo não só da FPF como também do banco Banespa... Eles ameaçavam via telefone, falavam: ‘a gente vai te matar, a gente vai explodir o banco, você vai ver a hora que você sair daí, na hora que você for almoçar’. Eu precisei andar vários dias com segurança, ligavam à noite... Encontrava com uns torcedores meio exaltados, eles falavam um monte de palavrão. Às vezes eu ia ao restaurante e era até obrigado a sair porque o cara te incomodava... Foram essas coisas que acabaram deixando a gente insatisfeito, então pelo menos uns dois a três meses eu sofri muito. No primeiro momento essas coisas não me afetaram profissionalmente, mas depois o que eu tive sim, eu tive problemas de saúde, entendeu? Fui fazer exames de rotina e detectou um câncer no estômago, tive que fazer cirurgia, quimioterapia e, consequentemente, tive que me afastar do futebol para me tratar. E quando eu quis praticamente já tinha 45 anos, aí não tive mais como apitar. Hoje graças a Deus está tudo sob controle na questão da saúde”.
Filho de José Aparecido estava no Morumbi
“Meu filho tinha 19 anos, o Fúlvio, ele estava no estádio, a minha filha Luzia Cristina, não... O meu filho, com relação ao futebol, ainda que eu tivesse errado em alguma coisa, nunca falou: ‘pai você errou, você acertou’. O meu filho não se identifica para ninguém como meu filho, é dele isso, entendeu? Como ele sabe que tem críticas a favor e contra ele fica blindado”.
A cusparada de Neto, o perdão e o reencontro
“A notoriedade do José Aparecido, tem que deixar bem claro isso... Ela nasceu no dia 13 de outubro de 1991. Foi quando eu tomei uma cusparada do Neto, em jogo dos mesmos times: Corinthians x Palmeiras. Ali eu ganhei notoriedade, e aí eu fui tido como árbitro polêmico, um árbitro disciplinador. A decisão de 93 foi mais um e só isso”.
“Eu fiquei triste, mas em nenhum momento passou pela minha cabeça reagir. Eu já havia presenciado e já tinha visto atos de alguns jogadores com aquela atitude de cuspir ou no adversário ou no árbitro. E porque eu perdoo o Neto? Dentro de um jogo de futebol você pode esperar tudo de um jogador, dependendo da temperatura dele, do temperamento dele, e até hoje o Neto mesmo fala que se ele tivesse a cabeça que tem hoje, jogando a bola que ele jogava, ele estaria lá na Europa. Então aquilo lá foi um ato do jogo, eu sempre soube que dentro de uma partida de futebol tudo poderia acontecer, e o único que tinha que ter o equilíbrio seria eu. Na realidade foi uma surpresa para mim, uma surpresa para a imprensa e uma surpresa para o público”.
“Posteriormente ele se encontrou comigo, pediu desculpas, eu não tenho nada contra ele, Acho ele hoje um excelente comentarista, ele fala o que o torcedor, o que o povo quer ouvir, é muito corajoso para dizer o que pensa, coisas que poucos têm. Ele teve a grandeza e a humildade de reconhecer que errou... Pediu desculpas e a vida segue”.
Apitar hoje é mais difícil...
É mais difícil apitar hoje. Antes você tinha uma câmera de TV, então os erros não apareciam. Quando eu comecei a apitar já tinham 18 câmeras, hoje devem ter 30, qualquer um vai errar, não tem como você não errar. Quem gosta de criticar é quem está fora, é diferente de quem está dentro. O ser humano erra, por natureza.
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