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Como a visão de futebol e mundo de Havelange se desfez em dez anos

Em entrevista ao UOL em 2006, Havelange falou de Maradona e de Teixeira na Fifa - AFP PHOTO / ANTONIO SCORZA
Em entrevista ao UOL em 2006, Havelange falou de Maradona e de Teixeira na Fifa Imagem: AFP PHOTO / ANTONIO SCORZA

Do UOL, no Rio de Janeiro

17/08/2016 06h00

Morto no Rio de Janeiro nesta terça-feira, aos 100 anos, João Havelange deixa a vida como um dos dirigentes esportivos mais influentes de seu tempo, goste-se ou não do que o seu legado representa. Ao mesmo tempo que teve seu nome ligado a milionários esquemas de corrupção, acabando afastado de cargos de direção, o brasileiro é tido como principal responsável pela expansão global do futebol em seus tempos de Fifa (Federação Internacional de Futebol), na longa gestão de 1974 a 1998 – principalmente para territórios de África e Ásia. 

Mesmo depois de deixar o comando da entidade, Havelange manteve-se ativo no primeiro plano da cartolagem mundial, até quase o seu falecimento. Como presidente de honra da Fifa, seguiu por algum tempo envolvido em decisões relevantes e negociações contratos. No entanto, muito de sua visão de futebol ruiu nos últimos dez anos, assim como boa parte de sua reputação.  
 
Pouco antes da Copa de 2006, João Havelange concordou em conceder entrevista exclusiva ao UOL Esporte. A única exigência, já em pleno século 21, foi que o diálogo de perguntas e respostas transcorresse através de troca de cartas. Toda a negociação para a conversa demorou mais de dois meses e se desenrolou, principalmente, através do correio. Mensagens por fax e contatos telefônicos com a secretária do dirigente, dona Irene, apressaram a conclusão da reportagem.
 
Publicada originalmente em 30 de maio de 2006, a entrevista com o então presidente de honra da Fifa apresenta visões sobre temas pertinentes à atualidade do futebol naquele momento. Havelange dividiu visões sobre assuntos como racismo em campo, uso de tecnologia no esporte, Diego Maradona, a expectativa pela Copa de 2014 no Brasil e o futuro de Ricardo Teixeira como dirigente. Algumas sensações ali manifestadas vieram a se concretizar, outras encontraram destinos diferentes. Confira:
 
COPA 2014 NO BRASIL
"A Confederação Brasileira de Futebol, pelos títulos que já ofereceu ao Brasil, no setor do futebol e também pelo respeito de suas administrações, tem todo o direito de ser candidata à realização de um campeonato mundial de futebol e, por decisão da Fifa, deverá ser em 2014. Se outros países já realizaram Copas do Mundo quando solicitados e corresponderam ao Caderno de Encargos da Fifa, por que o Brasil não estaria capacitado para cumprir, de forma respeitosa e elevada, os valores contidos no mencionado Caderno de Encargos? Dessa forma, certo estou de que o Brasil, pela CBF, terá condições para realizar uma inesquecível Copa do Mundo e, nesse sentido, deverão se conscientizar os poderes da República, através dos setores federais, estaduais e municipais."
 
O que aconteceu: O Brasil foi confirmado pela Fifa como sede do Mundial em outubro de 2007
 
RACISMO NO FUTEBOL
"O futebol, incontestavelmente, tem um poder aglutinador, e tenho certeza de que essa preocupação será superada, pois desde que cheguei à Fifa, em 1974, e até sua data de hoje, sob a presidência (Joseph) Blatter, tem sido uma constante da entidade internacional eliminar essa tristeza, representada pelo racismo. O futebol superará essa preocupação, através da sua representatividade junto às massas."
 
O que aconteceu: Há punições por racismo, mas está muito distante o dia no qual a Fifa terá sucesso em eliminar o racismo do futebol, seja manifestações em estádios ou entre atletas e técnicos durante a disputa do jogo.
 
TECNOLOGIA EM CAMPO
"Para essa sua pergunta, eu lhe diria que a Fifa tem um órgão denominado International Board, que tem a responsabilidade da arbitragem, fazendo parte do mesmo a Fifa e as quatro associações britânicas que estão sempre atentas e, portanto, estudiosas de todas as modificações tecnológicas que ocorrem no mundo, para oferecerem sempre decisões baseadas em experiências produtivas, visando à continuidade da evolução da arbitragem."
 
O que aconteceu: Após incidentes recorrentes em competições importantes, como o gol legal de Frank Lampard, não assinalado pela arbitragem na derrota da Inglaterra para a Alemanha na Copa de 2010, a Fifa reviu sua política de uso de tecnologia. Atualmente, o Mundial e outras competições com a chancela da entidade já contam com recurso de tecnologia de linha de gol.
 
RICARDO TEIXEIRA NA FIFA
"O presidente Ricardo Teixeira, que também tem a posição de membro do Comitê Executivo da Fifa, órgão que rege a entidade, além do pertencer a quatro importantes comissões da mesma entidade, com excelente trabalho realizado no Brasil, como presidente da CBF, por sua cultura e homem organizado para a evolução do futebol, por quê não teria condições em ser candidato à Fifa, pelas qualidades já apresentadas na direção desses dois poderes?"
 
O que aconteceu: Teixeira renunciou ao comando da CBF em 2012, após 23 anos no cargo. Envolvido em denúncias de corrupção, o dirigente também se afastou de sua posição na Fifa. Segundo a rede britânica BBC, Havelange e Teixeira receberam propina da ISL, agência de marketing que trabalhava com a Fifa. Ambos teriam assumido o crime e devolvido o dinheiro à Justiça suíça. A confusão fez com que o veterano cartola renunciasse ao seu cargo no Comitê Olímpico Internacional. Fora da entidade, Havelange não podia mais ser atingido e a apuração interna foi arquivada
 
PAZ COM MARADONA
"O jogador Maradona foi, indiscutivelmente, um expoente em campo, sendo aplaudido, idolatrado por todo o mundo, pela sua qualidade esportiva, tornando-o, sem dúvida alguma, um ídolo. Quanto ao problema que teve, que superou com grande dignidade, merece ser aplaudido por vencer essa fase difícil. Se a Fifa necessitar desse grande jogador para alguma missão, tenho certeza de que terá condições e, como tal, apto a servir ao futebol mundial por intermédio da Fifa."
 
O que aconteceu:  o craque argentino seguiu sendo um notório desafeto do dirigente, com repetidas críticas públicas à administração Havelange. Em 1990, após a derrota da Argentina na final da Copa, Maradona se recusou a cumprimentar o brasileiro. No Mundial seguinte, o ídolo foi excluído por doping no meio do torneio. Nunca houve um alinhamento do argentino com o comando da Fifa. Vencedor do prêmio de melhor jogador do século na votação popular - Pelé ganhou na avaliação de especialistas -, Maradona sabotou a premiação, deixando o palco durante a cerimônia. Sempre foi implacável com o que entendia como errado na gestão do futebol mundial, atacando preferencialmente Blatter e Havelange. Voltou à Copa apenas em 2010, como técnico da Argentina.