Caso Richarlyson: futebol é tão preconceituoso que nem reconhece homofobia
Richarlyson está de volta ao Brasil. Depois de uma passagem pelo futebol da Índia no ano passado, o ex-são-paulino foi anunciado como reforço do Guarani com a missão de ajudar o time campineiro a retornar à elite do futebol nacional. A chegada do jogador de 34 anos a Campinas, porém, vem sendo cercada de polêmicas relacionadas à homofobia, algo que não é novidade na carreira do jogador, que convive com a rejeição de torcedores desde que ganhou notoriedade no clube do Morumbi.
Assim que foi anunciado, o novo reforço foi alvo de protestos por parte da própria torcida do Guarani. Dois torcedores chegaram a atirar bombas na direção do estádio Brinco de Ouro momentos antes da apresentação. Nas redes sociais, o assunto também foi tema para bugrinos e seus rivais, invariavelmente com a sexualidade do jogador como pano de fundo. Richarlyson sempre disse ser hétero, mas nem por isso deixou de receber ofensas homofóbicas ao longo da carreira.
O episódio mais recente de intolerância em Campinas mostra que o problema é tão grave que até os personagens principais da história têm dificuldade de abordar a questão. O próprio jogador, seu empresário e o presidente do clube se recusam a tratar as reações preconceituosas como homofobia, dando a medida do problema.
Piadas, ironia de vereador e bombas na apresentação
A rejeição por parte da torcida do Guarani e as piadas homofóbicas – especialmente de times rivais – começaram a surgir assim mesmo que o interesse do clube em Richarlyson foi vazado. Tanto que a ideia da diretoria e do técnico Vadão, responsável por indicar o jogador, era que a negociação fosse iniciada e concluída sem que imprensa e torcedores tivessem conhecimento, já cientes da provável rejeição. Não aconteceu.
O vereador campineiro Jorge Schneider (PTB), pontepretano assumido, ampliou a discussão ao ironizar a contratação de Richarlyson nas redes sociais: “a pessoa certa no lugar certo”, escreveu em seu Facebook. A frase provocou muitas críticas ao político, que em seguida voltou a se manifestar alegando que sua declaração não teve cunho homofóbico.
"Estive conversando com um amigo que é bugrino e disse que eu havia assistido pela TV a um jogo do seu time e que ele estava naquela situação de não se classificar por falta de um meia esquerda bom, que chamasse a responsabilidade e que, se tivesse esse jogador, até o melhor jogador do time cresceria de produção. Ontem, quando vi a postagem do Marcos Luis Cobrão no Face, eu postei sim que era o jogador certo e no time certo, e em seguida disse: Joga muito ele", escreveu Schneider, tentando justificar a afirmação inicial como um elogio a Richarlyson.
Não bastassem as provocações em redes sociais, o Brinco de Ouro da Princesa, estádio do Guarani, foi alvo de bombas atiradas por torcedores pouco antes da apresentação de Richarlyson, na tarde da última segunda-feira (8). Durante a entrevista, o próprio jogador chegou a falar sobre a resistência de parte da torcida, mas nunca citando a homofobia ou falando sobre o que motivaria tal rejeição. “Nem Jesus Cristo agradou a todos. Estou aqui pela minha história no futebol e esse cara aqui do meu lado [Vadão, técnico] confia em mim. Isso é um ponto positivo. Sobre as pessoas que me rejeitam, depois vão me aplaudir”, disse.
Nas redes sociais, rivais foram claros nos ataques a Richarlyson:
Clube e empresário descartam homofobia
Entrevistado pelo UOL Esporte, o novo presidente do Guarani, Palmeron Mendes Filho, negou que a homofobia seja um dos motivos das manifestações. “Eu não posso acreditar nisso. Acredito que tenha alguma coisa a ver com um vínculo forte que ele tem com o São Paulo. O São Paulo é um rival tradicional nosso, ou já foi... Melhor acreditar que tem a ver com o fato de ele estar afastado do futebol e ter uma relação grande com o São Paulo”.
Independentemente disso, o mandatário bugrino diz acreditar que a rejeição de parte da torcida servirá como estímulo para ele ter sucesso no Guarani. “Eu acredito que serve como motivação. A história dele dentro do futebol demonstra que ele quebra barreiras. Acaba sendo um incentivo a mais e com toda certeza ele vai trazer tudo isso aí dentro de campo”, disse.
Assim como o presidente, o empresário de Richarlyson, Julio Fressato, também negou que a rejeição a seu jogador tenha alguma relação com homofobia: “Não, até porque ele nunca disse ser homossexual”. “Difícil saber [o porquê da rejeição]. Para o torcedor, quando começar a jogar e ajudar o clube a ganhar, tudo fica no passado. Ele respeita a opinião da torcida, como sempre respeitou, pois são eles que movem a emoção para o clube”, acrescentou.
“Ele já está acostumado com este tipo de pressão, passou por muitas situações semelhantes. Ele encara com tranquilidade. No São Paulo foi pior ainda”, disse.
Longo histórico de preconceito por onde passou
Apesar de nunca ter se declarado homossexual, Richarlyson já convive com o preconceito há anos. Não foi ‘perdoado’ nem pela torcida do time pelo qual mais fez sucesso na carreira: o São Paulo, onde conquistou o título mundial de 2005 e o tri brasileiro (2006, 2007 e 2008). Ao longo dos cinco anos em que defendeu o clube do Morumbi, viu a torcida tricolor ignorar o seu nome quando esta cantava, jogador por jogador, a escalação da equipe que iria a campo. Isso sem contar nas ofensas que recebia a todo momento das torcidas adversários.
Outros dois episódios estão ligados ao Palmeiras. Em 2007, o jogador chegou a processar José Cyrillo Júnior, então diretor alviverde, por ter sido chamado indiretamente de homossexual durante um programa de televisão. O juiz, porém, considerou que não houve dolo por parte do cartola palmeirense e rejeitou a queixa-crime apresentada por Richarlyson.
Já no fim de 2011, o jogador foi cogitado como possível reforço do Palmeiras. A principal torcida organizada do time, a Mancha Alviverde, tratou de demonstrar sua insatisfação com a contratação e levou uma faixa com os dizeres ‘a homofobia veste verde’, em um protesto que aconteceu na porta do CT.
O que pensam os especialistas
Katia Rubio, professora da USP e especialista em psicologia do esporte, acredita que não encarar o assunto como homofobia impede que o preconceito seja diminuído no meio do futebol. E diz que os próprios dirigentes contribuem para isso.
“Ao invés de a diretoria do clube pôr um fim nisso dizendo ‘independente do que ele é ou faz, o que a gente quer ver é a função dele dentro de campo’... É muito mais simples do que ficar tentando encontrar justificativas para o injustificável. Eles fazendo isso acaba piorando uma situação que já não é simples para o atleta e o clube lidarem. Com essa condição distorcida, distante do avanço de uma discussão social que a gente está vivendo no presente, o futebol de uma forma geral tenta ainda tapar o sol com a peneira, ou dizendo que ele não existe ou tratando da forma mais preconceituosa possível”, analisa.
Já a psicóloga Aline G. Querido, especialista em programação neurolinguística, acredita que o fato de o assunto não ser tratado como homofobia não só aumenta o sofrimento do indivíduo que sofre preconceito como também fortalece o agressor.
"Muitas vezes o próprio homossexual se apresenta como sendo homofóbico, tamanha é a negação e repulsa pela sua condição. A homofobia é uma questão social que precisa ser tratada com clareza. Hoje existem estudos que apontam uma tendência maior ao suicídio entre os jovens homossexuais. É preciso que cada vez mais exista abertura e respeito para que possamos falar sobre a homossexualidade. A negação tanto da opção sexual quanto de ser vítima da homofobia só aumenta o sofrimento do indivíduo e fortalece o agressor", analisa.
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