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Torcida se desculpa por chamar rival de gay e abre bandeira LGBT em estádio

César Magalhães/Divulgação
Imagem: César Magalhães/Divulgação

Adriano Wilkson

Do UOL, em São Paulo

18/05/2017 04h00

Corre uma lenda pouco contestada em Belém de que Remo x Paysandu é o clássico mais jogado da história do futebol mundial. De 1914 até o domingo retrasado, esses rivais que compartilham as mesmas cores e ergueram seus estádios na mesma rua, separados por uma distância de 450 metros, já se enfrentaram 741 vezes, média de 7 jogos por ano.

Maior do que o número de Re-Pas só o de provocações que as duas torcidas inventaram para atormentar uma a outra.

Um dos momentos mais irritantes é quando a torcida do Remo relembra o tabu de quatro anos que o time manteve sem derrota para o rival. Quando querem mencionar essa época, os remistas param tudo o que estão fazendo no estádio e começam a contar pacientemente de 1 a 33, o número de jogos que eles ficaram sem perder no clássico, entre 1993 a 1997.

Os bicolores respondem à altura. Nos últimos anos se tornaram comuns no Mangueirão, o palco dos clássicos locais, referências à empresa que distribui energia elétrica no Pará e à crise financeira que impede o rival de se reerguer. “Paguem a Celpa”, dizem os torcedores do Paysandu lembrando notícias sobre o corte de luz na sede do Remo por falta de pagamento.

Eu passei uns 20 anos no meio desse fogo cruzado. Em 2007, um grupo de amigos resolveu importar do outro lado do continente um modo de torcer diferente e levou ao estádio bandeirolas, guarda-chuvas e a disposição de não parar de cantar em momento algum. Assim nascia a Banda Alma Celeste, a primeira torcida com inspiração barra brava do Paysandu. 

Eles começaram a compor músicas originais e adaptar clássicos populares com letras de amor clubístico, e como nunca se envolviam em brigas com outras torcidas, conquistaram rapidamente a adesão da arquibancada. Foi ao lado deles que eu ouvi pela primeira vez no Mangueirão um canto diferente, entoado no ritmo do tradicional alento argentino. “O leão é gay, o leão é gay””, eles repetiam, quase infantilmente se referindo ao mascote do Remo.

O refrão tinha enorme adesão na torcida. Era novo, mas respondia a um histórico de provocação homofóbica entres os rivais. Um canto tradicional da torcida remista ecoava há décadas antes de todos os clássicos: “Ô ô ô, todo viado que eu conheço é bicolor, ô ô”. Quem era remista se referia ao rival como Gaysandu e quem era bicolor preferia o termo Gay Leão para falar do Remo.

Não é exatamente uma particularidade nesse esporte tão identificado com uma masculinidade para a qual tudo o que não é viril é digno de menosprezo e chacota.

Mas no mês passado, um fato novo começou a surgir no meio da torcida. Alguns disseram que foi apenas mais uma manifestação da ditadura do politicamente correto, uma força oculta disposta a tolher as formas tradicionais de expressão das torcidas e tornar o estádio de futebol em fundamentalmente um lugar chato de estar. “O futebol está ficando muito chato” foi o mantra repetido por esses críticos.

Para quem está por trás da mudança, porém, trata-se de uma evolução natural, fruto de discussões e reflexões que levaram a torcida a adotar uma postura mais tolerante e acolhedora em relação às diferenças. O fato é que no final de abril, a Banda Alma Celeste, um dos setores mais populares da arquibancada bicolor, lançou uma nota oficial abolindo o canto “O Leão é gay” e pedindo desculpas por seu comportamento homofóbico.

“Erramos durante vários anos”, dizia a nota, “propagando cantos homofóbicos disfarçados de rivalidade. Em decisão tomada em uma das nossas reuniões mensais, viemos comunicar que músicas e manifestações de cunho racial/homofóbico estão extintas do nosso repertório, entre elas a famosa música que chama o mascote do rival de gay".

Torcida explica por que vetou canto homofóbico

Uma semana depois o governo do Pará, que patrocina o campeonato estadual, fez uma ação de marketing antes do Re-Pa que decidiu o título. Os jogadores dos dois times entraram em campo com uma camiseta que pedia respeito à diversidade, enquanto as animadoras de torcida desfilaram pelo gramado com uma bandeira do orgulho LGBT de nove metros quadrados.

Três dias depois, quando o Paysandu enfrentou o Santos pela Copa do Brasil, a Banda Alma Celeste tomou uma atitude poucas vezes vista (senão inédita) nos estádios de futebol do país: a pedido do governo, eles estenderam a bandeira do arco-íris, símbolo do orgulho LGBT, no meio da arquibancada, provocando sentimentos contraditórios entre os demais torcedores: surpresa, apoio, revolta e, claro, provocações dos rivais.

bandeira LGBT - Thiago Gomes/Agência Pará - Thiago Gomes/Agência Pará
Imagem: Thiago Gomes/Agência Pará

“A gente sabia que o gesto não seria unanimidade, mas era importante fazer isso para começar uma discussão e uma reeducação”, disse Fidélis Neto, um dos membros da torcida, quando o procurei no começo da semana. “Muita gente reagiu irada, fez ameaças. O futebol é um ambiente machista, homofóbico, e isso se refletia no nosso próprio comportamento, mas essa reflexão tem que começar de algum lugar.”

Rivais reagem com provocação e apoio

O Paysandu apoiou a ação da torcida. E, enquanto alguns torcedores rivais usaram a bandeira do arco-íris para alimentar suas provocações, outros apoiaram a atitude.

“É uma atitude louvável deles e você não percebe nada parecido no nosso lado”, disse o fotógrafo Salim Wariss, que vai a jogos do Remo há 27 anos. “Muitos torcedores se revoltam porque a nossa torcida não tem nenhuma ação mais concreta de combate ao preconceito, nada de forma institucionalizada.”

Procurada, a Camisa 33, uma das barra bravas do Remo, disse que foi também convidada a estender a bandeira do arco-íris, mas temeu que a ação pudesse causar conflitos e decidiu só aceitar o convite se todas as outras torcidas também o fizerem.

bandeira lgbt - César Magalhães/Divulgação - César Magalhães/Divulgação
Imagem: César Magalhães/Divulgação

“Como é assunto controverso, por questões de segurança, preferimos não levantar a bandeira agora, mas podemos fazer no futuro”, disse Cássio Maciel, diretor da Camisa 33. “Somos completamente contra provocações homofóbicas. Já fizemos, mas depois de muita reflexão e informação decidimos mudar. Existem outras formas de encarnar o rival.”

Cássio também disse que a ordem na Camisa 33 é não acompanhar cantos homofóbicos puxados em clássicos, como o tradicional refrão segundo o qual “todo viado que eu conheço é bicolor.”

Reflexão sobre o grito de bicha gerou mudança

Ao menos desde 2013 têm surgido páginas em redes sociais que reúnem torcedores da comunidade sexo-diversa e progressista em torno do amor a seu clube, como a Galo Queer, a Palmeiras Livre ou a Bambi Tricolor, mas apesar de elas terem forte presença virtual, seus membros não costumam mostrar seus símbolos no estádio com medo de represálias.

O futebol, apesar de tudo, continua sendo um ambiente hostil a gays, lésbicas e transexuais, como sinaliza a repercussão da contratação do volante Richarlyson em parte da torcida do Guarani de Campinas.

A presença de uma bandeira colorida no meio da arquibancada de um clube tradicional desafia essa lógica. Mas como as torcidas chegaram ao ponto de refletir sobre suas próprias ações e mudar sua atitude?

Paysandu mosaico - Fernando Torres/Divulgação - Fernando Torres/Divulgação
Imagem: Fernando Torres/Divulgação

“Tudo começou com conversas que tivemos sobre o grito de bicha”, disse Fidélis Neto. O grito de bicha no momento do tiro de meta do goleiro, importado dos mexicanos que vieram à Copa de 2014, se espalhou por todos os cantos do país. “Ao mesmo tempo em que éramos contra o grito, nos achávamos hipócritas em continuar cantando ‘o leão é gay’.”

Imediatamente após o jogo da Copa do Brasil, no qual o Paysandu foi eliminado com uma derrota para o Santos, começaram a surgir reações agressivas contra a bandeira do arco-íris. Em grupos de Whatsapp e no Facebook, torcedores disseram que rasgariam e queimariam bandeiras coloridas que aparecessem nos jogos seguintes.

“Eles estão fazendo isso só para aparecer na televisão”, disse um torcedor em um áudio compartilhado no Whatsapp. “Estádio não é lugar disso”, disse outro. No dia em que o time enfrentaria o Luverdense pela final da Copa Verde, a torcida se dividiu entre o apoio a novas manifestações contra o preconceito e o rechaço a elas. Uma acusação que se espalhou foi a de que a Banda Alma Celeste teria recebido dinheiro do governo para levantar a bandeira, o que tanto a torcida quanto o governo negam.

Gays, lésbicas e transsexuais ainda são raridade em estádios

Mesmo tendo crescido frequentando estádios de futebol em Belém, conhecendo torcedores dos dois lados do Mangueirão, eu não lembro de jamais ter tido nenhum companheiro de arquibancada que não fosse heterossexual. Meus amigos gays não são muito ligados a futebol.

Fiz uma pesquisa entre amigos de estádio e todos chegamos a mesma conclusão: não conhecemos nenhum torcedor gay, lésbica ou transexual. Mesmo que eles estejam lá, eles preferem passar despercebidos. Alguns gays procurados não quiseram dar entrevista com medo de ficarem marcados.

Campanhas como essas provocam o debate nesse ambiente dos estádios e talvez possam torná-lo um pouco mais aberto e tolerante a quem tem orientação sexual diversa.

“Esse assunto precisa ser tratado com muita delicadeza e cuidado”, disse Pedro Loureiro, um antigo frequentador de arquibancada que virou diretor de comunicação do Paysandu. “Sabemos que quando resolvemos abraçar a causa, haveria reações, mesmo interna. Mas a nossa proposta vai ser sempre defender um ambiente mais tolerante.”

Horas antes do jogo contra o Luverdense, pela final da Copa Verde, enquanto uma parte da torcida do Paysandu mantinha a ideia de continuar a campanha no estádio e enfrentar as reações negativas, a Banda Alma Celeste comunicou que não levaria a bandeira LGBT novamente.

O Paysandu precisava reverter uma vantagem de dois gols para ser bicampeão do torneio regional. A torcida já teria muito trabalhado preparando um imenso mosaico que tomaria metade da arquibancada do Mangueirão. Depois de 90 minutos de um futebol frio, o Paysandu acabou empatando com o Luverdense e perdendo o título em casa, diante de quase 30 mil torcedores.

Metade da cidade, porém, explodiu em festa: fogos de artifício iluminaram a noite da de Belém acendidos por remistas que comemoravam em plena terça-feira a derrota do rival.

Pelo Whatsapp, um amigo enviou uma fotomontagem simples para tirar sarro do histórico recente de vexames que o Paysandu tem protagonizado diante de seu torcedor. Na imagem um sujeito pilotava uma moto decorada com o escudo do clube ao lado da frase: “Delivery, entregamos em casa.”