Sindicato detona Fifa e comemora conquistas contra "escravidão" no Qatar-22
Enquanto acontece a contagem regressiva para a Copa da Rússia, no Qatar, país-sede em 2022, ao menos 1.200 operários vinculados às obras do Mundial já morreram como resultado das condições degradantes de trabalho, de acordo com relatório da Confederação Internacional da União dos Trabalhadores (ITUC, sigla em inglês), que representa mais de 200 milhões pessoas em 155 países.
Nesta entrevista ao UOL Esporte, a secretária-geral da associação, a galesa Sharan Burrow, 63 anos, critica com veemência a omissão da Fifa no caso, mas confirma e comemora um recente acordo com o governo qatari para acabar com o que ela chama de “escravidão moderna”.
No Oriente Médio, cerca de 23 milhões de trabalhadores imigrantes estão sujeitos à “kafala”, que em árabe significa tutela. Neste sistema cujas raízes datam dos anos 30, os funcionários só podem trocar de emprego ou até mesmo sair do país com a autorização da empresa com quem têm contrato.
Com o poder na mão dos empregadores, os operários ficam sujeitos a condições impostas e, com direitos restritos, muitos têm de encarar longas horas de expediente forçado, sem intervalo, em altas temperaturas – no verão, os termômetros apontam até 45ºC.
Crítica ferrenha da conjuntura trabalhista nos países do Golfo, Burrow esteve no Qatar incontáveis vezes desde que o país foi escolhido, em 2010, como a primeira sede árabe para uma Copa. A seguir, a líder sindical explica quais são as principais melhorias aguardadas após o acordo firmado com o governo local.
Papel da Fifa no acordo recente com o Qatar
Francamente, os representantes gerais da Fifa, como responsáveis globais pelo futebol, não fizeram absolutamente nada. Não temos nada além de uma avaliação muito ruim da Fifa. O Comitê Supremo para Entrega e Legado no Qatar, por outro lado, está sendo muito prestativos ao conduzir inspeções nos postos de trabalho a fim de instalar mecanismos de esfriamento da temperatura para os trabalhadores, assim como processo de monitoramento de pressão arterial que serão fundamentais nas novas condições de trabalho.
A minha visão sobre a Fifa é que ela ainda precisa melhorar a própria instituição e o seu comportamento em relação aos direitos humanos. Se observarmos a exclusão de mulheres nos estádios no Irã, a Fifa tem de se posicionar de maneira convincente e deixar claro que os abusos de direitos humanos e dos trabalhadores são inaceitáveis para eles. Se a Fifa tivesse a coragem de agir, poderíamos ter conquistado os direitos muito mais rapidamente, em tempo recorde.
O acordo e as melhorias
Tenho o prazer de contar que temos um pacto para acabar com o sistema da kafala e oferecer direitos fundamentais para estes trabalhadores. Estamos em período de transição, e começamos com o apoio da Organização Internacional do Trabalho (ILO, sigla em inglês) uma parceria técnica que vai nos ajudar a acompanhar o desenvolvimento desta nova fase.
Por isso, nas próximas semanas a ILO abrirá um escritório no Qatar para atender os trabalhadores nesta reforma que será implementada. Também haverá um Tribunal Independente do Trabalho não vinculado à Justiça do país, que não tem funcionado de maneira transparente e, a meu ver, age de forma subserviente e corrupta em alguns processos.
Até metade de abril, acabará a necessidade do visto de saída do país. Com essa reforma, também será viabilizada a troca de emprego caso o funcionário decida mudar de empresa. Os contratos não poderão ser alterados ou substituídos pelos empregadores, porque estes documentos agora passarão a ser registrados no governo com a nossa supervisão e deixarão de estar sob o poder de quem emprega.
O governo do Qatar também criou um fundo que apoiará os trabalhadores a voltarem ao país de origem ao final do contrato ou quando os empregadores se recusarem a financiar a viagem. Isso significa que o trabalhador não será mais vítima de mau comportamento pelo empregador, e caberá ao governo negociar com as empresar o retorno desse investimento.
Um salário mínimo também será introduzido para acabar com o sistema discriminatório de apartheid na remuneração. A negociação entre a Organização Internacional do Trabalho e o governo do Qatar está em andamento, mas posso dizer que a definição levará em consideração o custo de vida no país e o contexto que os trabalhadores estão longe de seus países com o objetivo de obter o sustento da família.
Fim da kafala no Qatar?
Se tudo ocorrer dentro do planejado, até novembro todos os mecanismos estarão em funcionamento para acabar com o sistema da kafala, a escravidão moderna. Claro que não esperamos que tudo aconteça da noite para o dia, mas estamos confiantes que a estrutura montada pelo país causará alteração profunda na situação atual. Assim, os trabalhadores poderão tirar seu sustento no país com a confiança de que serão tratados com respeito, dignidade e sem violações dos direitos.
Os contatos com a Fifa sobre o tema
Nos primeiros seis meses da campanha nós demos espaço para a Fifa fazer a diferença. Eles não se mexeram para nada e sequer se importaram com a situação. Depois disso, diversos dirigentes corruptos foram presos. Agora finalmente eles começaram a se movimentar, mas nada de maneira efetiva.
A violação dos direitos existe muito além do Qatar, claro, mas certamente esperávamos que a maior instituição de futebol auxiliasse no combate às condições de trabalho contra as quais estamos lutando há anos no Qatar. Com o avanço que conseguimos, o nosso foco agora é no acordo que temos com o Qatar e com a Organização Internacional do Trabalho para eliminar a kafala do país.
A senhora se sente bem-vinda no Qatar?
O Qatar nunca tentou me impedir de entrar no país ou de tornar públicos os nossos estudos sobre as condições de trabalho relacionado à Copa. Não dá para dizer que eles sempre receberam bem a nossa abordagem. Mas desde que sentamos para negociar com eles, agora posso dizer que eles entendem a importância da nossa missão. Depois do acordo, as partes se tornaram parceiras na implementação e monitoramento das mudanças.
Minha última visita aconteceu em janeiro, quando me reuni com representantes do governo para debater a implementação do nosso acordo. E saí de lá satisfeita que os termos do calendário de trabalho ainda estavam de pé. Voltarei em abril para supervisionar o andamento dos trabalhos, a abertura do escritório da Organização Internacional do Trabalho, e também para conversar com os trabalhadores sobre a melhoria das condições dele.
O relatório da ITUC de 2014 aponta 1.200 mortos no Qatar. Esta estatística foi atualizada desde então?
Não temos números atualizados, mas o próprio governo está compilando estatísticas e vamos torná-las públicas. Houve ao menos mais uma morte nas últimas semanas, e o Comitê Supremo também conduz investigação sobre as causas da tragédia. Faremos isso de maneira transparente, o que não existiu no país nos últimos anos.
Campanha por nova eleição para a sede de 2022
A nossa campanha (“Re-Run The Vote”, Vote de novo, em inglês) existia no contexto da violação dos direitos dos trabalhadores sem leis efetivas no país. Claramente nós temos um acordo, e os nossos esforços também se voltarão para os outros países, como Arábia Saudita e Emirados Árabes. Esperamos que Fifa, no contexto global, mude a maneira que pensa sobre diretos humanos e dos trabalhadores. Nenhum evento esportivo, incluindo os de outras modalidades, como os organizados pelo Comitê Olímpico Internacional, deveria ter como sede país com histórico de violações de direitos.
Fiscalização da Copa da Rússia
Acompanhamos tudo, principalmente o trabalho de fiscalização feito por ONGs, como a Human Rights Watch e a Anistia Internacional. Nesse caso, já há uma parceria com os responsáveis locais pelo evento para inspeções nos estádios e demais construções, mesmo que os órgãos representantes dos trabalhadores estejam bem estabelecidos no país, o que não acontece no caso do Catar.
Avaliação das condições no Brasil-2014
Também prestamos apoio aos nossos afiliados e às ONGs para fiscalizar as construções da Copa. Claro que o Mundial no Brasil foi absolutamente controverso por conta do custo e do dinheiro público gasto em contraste com a realidade do país. O legado é muito negativo. Agora observamos no governo Temer a profunda deterioração dos direitos trabalhistas não só relacionados ao esporte, mas no contexto geral.
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