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Por que Argentina se interessa e lança livros de futebol que Brasil ignora

Roger, ex-técnico do Palmeiras, e sua comissão compraram livros na Argentina em abril - Acervo pessoal
Roger, ex-técnico do Palmeiras, e sua comissão compraram livros na Argentina em abril Imagem: Acervo pessoal

Gabriel Carneiro

Do UOL, em São Paulo

04/08/2018 04h00

O Brasil é um dos países mais apaixonados por futebol do mundo, e quanto a isso não há discussão. Porém, o consumo deste esporte pelo brasileiro ainda é uma incógnita, em alguns casos uma dificuldade. Enquanto os responsáveis pelo marketing de clubes e atletas estudam estratégias para vender seus produtos, escritores que se dedicam a obras para entender o futebol encaram a dura realidade da restrição do mercado e do público leitor. 

O primeiro ponto deste desafio é que o Brasil não é um país que lê muito. De acordo com a pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, realizada pelo Ibope sob encomenda do Instituto Pró-Livro em 2016, 44% da população brasileira não leu nem sequer um livro nos últimos três meses e 30% jamais comprou um livro. A média de leitura da parte que lê é de 4,96 livros por ano, sendo 2,43 terminados e 2,53 lidos em partes. Quando o livro é de esporte, então, a estatística desaba.

A Publishnews, que faz levantamentos semanais sobre livros mais vendidos, não registrou nenhum título esportivo entre os 20 mais lidos do Brasil no mês de julho - o líder do ranking é "As Aventuras na Netoland com Luccas Neto", sobre as histórias de um youtuber com mais de 13 milhões de inscritos em seu canal. Esportivos estão atrás de religiosos, autoajuda, contos, romances, didáticos, infantojuvenis, quadrinhos, poesia, história/economia/política, ciências, culinária, técnicos, saúde, biografias, artes e educação. Ufa.

Brasileiro publicou obra na Argentina

Julian Tobar é um técnico, auxiliar e analista de desempenho no futebol brasileiro, que trabalhou em clubes do Rio Grande do Sul, teve experiência em Portugal e esteve por três anos na base do Joinville, clube no qual chegou a dirigir o time profissional interinamente. Ele é formado em Educação Física pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, com intercâmbio na Universidade do Porto, em Portugal, e pouco após a graduação decidiu publicar sua monografia. A adaptação deste projeto original, que fala sobre treinamentos de futebol, levou cinco anos. 

Livro de Julian Tobar - Reprodução - Reprodução
Imagem: Reprodução

Com o livro pronto, o escritor ofereceu a editoras brasileiras. Não houve interesse. Foi um grupo estrangeiro que investiu no projeto. "Estive na Argentina em 2013 para fazer um curso e um estágio no Estudiantes. Neste curso eu conheci a pessoa que organiza as publicações de uma editora chamada Libro Fútbol no país. Um dia eu comentei que tinha recém-finalizado minha monografia e a transformado em livro e ele se interessou", conta Tobar, que lançou em espanhol o livro escrito em português: "La Periodización Táctica Es...". 

Em 18 de setembro, o livro será lançado também em português. Mas por uma editora de Portugal chamada Prime Books, que venderá ao Brasil pela internet. 

"Acho que não existe interesse das editoras brasileiras. Talvez não seja comercial. Ou talvez seja e eles ainda não sabem disso", reflete o autor.

"A melhor coisa que teve para o futebol brasileiro foi o 7 a 1, porque deu aquele choque de que estamos atrasados. Eu estudo periodização tática desde 2010 e bem ou mal todo mundo ouviu falar. Mas no Brasil havia rejeição, porque é algo que vem de Portugal. Questionavam: 'Portugal ganhou o quê?', 'Quem é português para ensinar o brasileiro a treinar?'. O 7 a 1 demonstrou que precisamos nos abrir. Não subverter nossa cultura, mas evoluir. A Argentina hoje em dia exporta muito treinador, e não à toa é um país que produz literatura esportiva. Nós ficamos atrás", diz Julian Tobar, cujo foco de estudos é que as partes física, técnica e psicológica do futebol são desenvolvidas a partir de uma organização de jogo, a tal periodização tática.

Livro de Julian Tobar - Reprodução/Facebook - Reprodução/Facebook
Imagem: Reprodução/Facebook

Al gol se llega  leyendo ("Ao gol se chega lendo")

A Libro Fútbol já soma mais de cem obras publicadas na Argentina. São títulos sobre a parte tática do futebol, como do escritor brasileiro, além de preparação física, métodos de treinamento, histórias, biografias e contos. Estão entre os livros mais vendidos da atualidade os seguintes: "Secretos de campeón", de Gerardo Salorio, parceiro de José Pekermann no comando de seleções de base do país; "Gallardo Monunental", de Diego Borinsky, sobre o treinador do River Plate; "Gallardo vs Guillermo: claves para liderar a tu equipo", de Mauro Medvetkin, sobre os técnicos de River e Boca Juniors, e "El Turco", de Leandro Sanchez, sobre os métodos do técnico Antonio Mohamed, hoje no Monterrey.

São muito comuns na literatura esportiva da Argentina títulos sobre métodos de treinamento e biografias dos principais treinadores do país. Tata Martino, Alejandro Sabella, Marcelo Bielsa, Juan Antonio Pizzi, Diego Simeone, Edgardo Bauza, Carlos Billardo, Jorge Sampaoli... Todos têm pelo menos uma obra publicada sobre sua carreira. Juan Carlos Osorio, técnico colombiano que dirigiu a seleção mexicana na Copa do Mundo da Rússia, têm duas obras diferentes à venda. Gallardo, quatro. Bielsa, seis. Só desta editora.

"Há dois motivos para o interesse do argentino por literatura esportivo. O primeiro é técnico, pois há uma forte demanda por capacitação, por conhecimento de tendências e por como pensam os melhores técnicos aqui. O segundo é porque trata-se de um nicho que antes não existia. Há muita gente que gosta de futebol e não era leitor habitual de livros que com o surgimento desse material se converteu em leitor assíduo. Interessa ao treinador, interessa ao jornalista e interessa ao fã de futebol que deseja aumentar seu conhecimento e entender mais o jogo e as pessoas. A recepção tem sido muito boa", explica Mauro Metvetkin, escritor e diretor da Libro Fútbol, otimista com a recente publicação de um autor brasileiro sobre tática.

Libro Fútbol - Reprodução/Facebook - Reprodução/Facebook
Imagem: Reprodução/Facebook

"O material é muito bom e recomendado por uma eminência da capacitação no futebol, que é Vitor Frade. Além disso eu conheci o autor em 2013, em um congresso de futebol, e sei da capacidade. Temos que apoiar projetos como estes, é nossa forma de melhorar o futebol."

E no Brasil, por que é diferente?

Pela visão de Metvetkin, as editoras brasileiras buscam livros mais "comerciais", "que possam ser consumidos por todo o país". Mas ele vê interesse do brasileiro em publicações esportivas e conta que recebeu a antiga comissão técnica do Palmeiras antes de uma partida contra o Boca Juniores pela Copa Libertadores, em abril. 

Lançada em julho de 2015, a Editora Grande Área é pioneira no mercado editorial brasileiro em publicação de livros sobre futebol. São oito obras já lançadas, como as histórias de Pep Guardiola e José Mourinho traduzidas. O primeiro título nacional do catálogo será lançado no ano que vem, sobre a história dos clubes e do futebol brasileiro do ponto de vista das finanças e de como serão construídos os próximos campeões. "Dois amigos e eu começamos a falar sobre como era difícil que os melhores livros sobre futebol lançados no exterior chegassem ao Brasil", diz Gabriel Gobeth, sócio da editora.

"As dificuldades são imensas e é um projeto que sem dúvida tem que ser visto como de longo prazo, apostando na formação do público leitor que na realidade ainda não existia. Essa é nossa impressão depois de quase três anos de vida. Acreditamos estar formando os nossos leitores à medida que vamos publicando os nossos livros, por isso temos todo o cuidado do mundo ao selecionar cada título para publicação", explica.

Livros da Editora Grande Área - Reprodução/Facebook - Reprodução/Facebook
Imagem: Reprodução/Facebook

Gobeth destaca três pontos sobre a ausência de publicações mais técnicas no Brasil: "é difícil vender livro no Brasil para qualquer editora e sobre qualquer assunto" é o primeiro; outro diz respeito ao fato de a Argentina ser um país mais leitor que o Brasil, com mais bibliotecas e livrarias, e com uma cultura de leitura já adquirida; e o último é o ponto de vista de que o futebol brasileiro ainda rejeita o conhecimento formal. "Minha percepção é de que isso está mudando, mas é um processo que promete ser longo", diz.

Mais que uma caixinha de surpresas

A Copa do Mundo de 2014 ter sido realizada no Brasil impulsionou o mercado editorial sobre futebol, mas poucos títulos ocuparam o topo dos rankings de vendas. "Tite", uma biografia sobre o técnico da seleção brasileira lançada em 2016 pela jornalista Camila Mattoso é um dos raros exemplos. Também são positivos os números de venda de publicações sobre títulos de clubes, crônicas e relatos de torcedores, mas publicações mais técnicas ou táticas ainda têm pouco espaço. Uma das mais bem-sucedidas é "Tática mente", do jornalista Paulo Vinícius Coelho, que explica a história das Copas do Mundo "pelas cabeças e pranchetas dos treinadores."

Biblioteca - Junior Lago/UOL - Junior Lago/UOL
Imagem: Junior Lago/UOL

A explicação, de acordo com especialistas ouvidos pelo UOL Esporte, é que o futebol ainda é muito visto como algo que não merece ser estudado ou lido. Há publicações antigas que derrubam a versão, como "O Negro no Futebol Brasileiro", de Mário Filho, ou "A Pátria de Chuteiras", de Nelson Rodrigues. 

Há poucas livrarias com seções exclusivas de esportes. Geralmente os títulos estão misturados à temática de viagens e turismo. Grandes biografias, como "Estrela Solitária", de Ruy Castro, sobre Mané Garrincha, estão em seções de biografias e não de esportes, por exemplo. Isso dificulta a catalogação. De acordo com o Centro de Referência do Futebol Brasileiro, do Museu do Futebol, foram mais de 1.200 obras sobre futebol publicadas nesta década. Mas poderiam ser mais. Um passo fundamental, também segundo especialistas, é acreditar no potencial de determinadas publicações. O conhecimento de futebol pode ir além do fato de que ele é uma caixinha de surpresas.