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Derrota política e promessa pelo país tiraram Sócrates do Corinthians em 84

Diego Salgado

Do UOL, em São Paulo

30/10/2018 04h00

A cena parece utópica nos dias atuais: o mais importante jogador do futebol brasileiro faz uma promessa arriscada pelo retorno do direito de ir às urnas, diante de dois milhões de pessoas. Derrotado politicamente, ele deixa o Brasil rumo à Fiorentina, da Itália. Foi dessa forma que a saída de Sócrates do Corinthians virou realidade em junho de 1984, num roteiro marcado também pelo sentimento amargo e a tristeza em relação aos rumos do país e à própria vida pessoal.

Por meses, na ânsia popular quase unânime de poder enfim voltar a escolher o presidente do Brasil - a última eleição direta no Brasil havia ocorrido em 1960 -, Sócrates se dividiu entre os gramados e os palanques. E, esperançoso, doou-se como se fosse um jogo de título. A derrota, segundo pessoas próximas ao ex-jogador, foi pior do que qualquer outra na carreira. Contrariado, ele aceitou uma proposta da Fiorentina.

A saída de Sócrates do Corinthians passou a ser uma possibilidade no começo de 1984, quando a Inter de Milão fez uma proposta por ele. Semanas depois, Napoli e Fiorentina repetiram a atitude. Em meio à situação política do Brasil e ao assédio europeu, o craque corintiano, então, prometeu que ficaria no país caso a Emenda Dante de Oliveira fosse aprovada pela Câmara e o Senado.

Sócrates - Renato dos Anjos/Folhapress - Renato dos Anjos/Folhapress
Sócrates participa de ato pelas Diretas em 1984: derrota política fez o jogador ir embora
Imagem: Renato dos Anjos/Folhapress

A declaração foi dada no maior comício do Movimento Diretas Já, dia 16 de abril de 1984, ao lado de lideranças políticas como Lula, Fernando Henrique Cardoso, Ulisses Guimarães, Leonel Brizola e Tancredo Neves. Nove dias depois, porém, a Emenda não foi aprovada nem mesmo pelo Congresso. Eram necessários 320 votos favoráveis, mas faltaram 22 - pressionados, 113 deputados não compareceram à sessão. Outros 65 votaram contra e houve três abstenções.

Esperança viva fazia parte do enredo

Antes da votação, o sentimento de Sócrates era o mesmo das centenas de milhares de brasileiros que foram às ruas por democracia: ele tinha certeza que a Emenda passaria na Câmara. Para o jogador, a questão estava resolvida justamente por causa do apelo popular. Diante disso, os deputados federais aprovariam o texto.

"Como ele não tinha a menor vontade de ir embora do país, ele apostava na promessa com tudo. Ele estava muito otimista. Ele não fazia nenhum plano de ir para a Europa, ele tinha absoluta convicção que passaria", lembra o jornalista Juca Kfouri, que esteve ao lado de Sócrates em muitas manifestações pelas Diretas.

A esperança foi logo levada aos campos. No dia 14 de abril, um dia antes de a promessa ser feita no Vale do Anhangabaú, Sócrates entrou no gramado do Morumbi com tornozeleiras amarelas, cor do movimento popular pelas eleições. Com elas, fez quatro gols na goleada por 5 a 0 sobre o Goiás.

Uma semana depois, em uma entrevista à Revista Placar, Sócrates comparou a participação no Movimento à atuação na Copa do Mundo da Espanha, em 1982. Nas declarações a Juca Kfouri, mostrou-se novamente confiante.

Sócrates 3 - Reprodução - Reprodução
Sócrates repetiu as declarações com a promessa à Revista Placar em abril de 1984
Imagem: Reprodução

"Eu estou outra vez supermotivado. Andei querendo achar explicações para um bando de coisas que estavam acontecendo em torno de mim e em geral. Senti que tinha gente fazendo corrente contra o nosso trabalho, outras pessoas querendo manipular o sentido coletivo. Hoje eu sinto que essas pessoas são impotentes para nos vencer, e a minha frustração se transformou em vontade de lutar. A minha preocupação hoje é com o resultado mesmo, é para ganhar em todos os níveis", afirmou Sócrates à época.

O gosto amargo o perseguiu Sócrates por anos

No dia da votação da Emenda, o Corinthians entrou em campo para uma partida decisiva contra o Atlético-PR. O time alvinegro buscava um empate em casa para confirmar a classificação às quartas de final do Brasileirão. Sem Sócrates, contundido, a equipe venceu com dois gols de Casagrande. Mais cedo, porém, a derrota política acometeu o craque.

Segundo Juca Kfouri, o camisa 8 não acreditava no que havia acontecido em Brasília. Jornalista e jogador, companheiros da luta pelas Diretas, conversaram logo depois da decisão do Congresso.

"Ele estava arrasado, sabendo que aquilo tinha um peso na vida dele. Que o fato da Emenda não ter passado o levaria embora, que era o que ele não queria. Havia o lado coletivo, que foi sempre o que prevaleceu nele, mas tinha uma alta dose individual naquilo", afirmou Juca.

Já Wladimir, lateral esquerdo do Corinthians nas décadas de 1970 e 1980 e que também participou do comício no Anhangabaú, disse que todo elenco alvinegro ficou atônito com o revés político. "Isso nos pegou de surpresa. A gente achava que ia passar. Eu, o Sócrates e o Casagrande subimos no palanque. A gente se engajou plenamente na campanha acreditando qie ia passar", relembrou o ex-atleta.

O Corinthians, ainda sem Sócrates, voltou a jogar no dia 29 de abril. A derrota por 2 a 0 no Maracanã forçou o time corintiano a virar o duelo de mata-mata. Com o camisa 8 em campo, a equipe venceu por 4 a 1 diante de 115 mil torcedores no Morumbi.

Sócrates 2 - José Nascimento/Folhapress - José Nascimento/Folhapress
Sócrates com Juca Kfouri em 1984, meses antes de deixar o Corinthians rumo à Itália
Imagem: José Nascimento/Folhapress

Mas a trajetória de Sócrates, apesar do triunfo histórico estava mesmo no fim. Dias depois da derrota corintiana para o Fluminense na semifinal, o jogador optou por aceitar a proposta da Fiorentina - ele ainda disputou dois amistosos antes de se despedir do Corinthians.

De acordo com Juca Kfouri, a tristeza vista no aeroporto no embarque à Europa, dia 14 de junho de 1984, prolongou-se por muito tempo. "Ele estava sempre chateado, com saudade, telefonava de madrugada, ficava conversando por horas. Ele não sossegou nunca, tanto que voltou rápido", ressaltou o jornalista.

"O Sócrates era idealista ao extremo, por isso ele fez a promessa. Ele teve de cumprir. Ele não queria sair [do Brasil], só foi porque fez a promessa. Até porque a gente vivia um momento especial no Corinthians", frisou Wladimir.

A passagem pelo futebol italiano foi breve. Envolvido em polêmicas e em rota de colisão com o dono da Fiorentina, Ranieri Pontello, Sócrates defendeu a Fiorentina por apenas uma temporada e entrou em campo 26 vezes.

"Eu credito muito o insucesso dele na Fiorentina ao fato de ele ter ido contra a vontade. Qualquer problema lá virava um problemão. Ele sempre foi muito habilidoso para tratar as coisas, mas lá não foi assim", contou Juca Kfouri.

Depois de quase acertar com a Ponte Preta, Sócrates acabou contratado pelo Flamengo, onde também pouco jogou. Depois, passou pelo Santos e pelo Botafogo-SP, clube que o revelou. O retorno ao Corinthians nunca ocorreu, mas o ex-jogador viu o Brasil voltar às urnas em dezembro de 1989, um ano depois da promulgação da Constituição de 1988. A ferida aberta em 1984 foi, então, fechada.