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Gaúcho - 2019

"Selo Fifa" e 61°C no calor: o gramado que embala a surpresa do Gauchão

São José tem gramado sintético como base e surge como surpresa no Campeonato Gaúcho - RAUL PEREIRA/FOTOARENA/ESTADÃO CONTEÚDO
São José tem gramado sintético como base e surge como surpresa no Campeonato Gaúcho
Imagem: RAUL PEREIRA/FOTOARENA/ESTADÃO CONTEÚDO

Giancarlo Giampietro

Colaboração para o UOL, em São Paulo (SP)

24/02/2019 04h00

O bairro Passo d'Areia, na Zona Norte de Porto Alegre, é assim chamado em alusão a um riacho que lá corria sobre chão arenoso. Canalizado, agora subterrâneo, ele não está mais à vista. Ao contrário do estádio do São José, que pegou emprestado o nome da vizinhança e possui outro tipo de superfície que vem sendo fonte de outras histórias.

Com seu reformado gramado sintético, o estádio Passo d'Areia recebe manchetes, enquanto a concorrência tende a chiar. E dá uma boa ajuda para a ótima campanha de seu anfitrião. Passadas sete rodadas do Campeonato Gaúcho, o São José está no terceiro lugar, atrás apenas da dupla Gre-Nal, e venceu todos os três jogos que realizou em casa.

Foi em casa, aliás, que o "Zequinha" bateu o Inter por 2 a 0. Resultado histórico: foi a primeira vitória no confronto após nove anos.

"Os adversários têm realmente dificuldade para se adaptar ao gramado. Então a gente usa isso até como uma arma, sendo nosso 12º jogador", diz o gerente executivo do clube, Luciano Oliveira. "Sempre o pessoal acaba destacando mais o próprio campo do que o trabalho desenvolvido".

Caldeirão de 61°C no calor

Internacional passos d'areia gramado - reprodução/RBS - reprodução/RBS
Jogador do Inter refresca o pé durante jogo no Passo D'Areia
Imagem: reprodução/RBS

O confronto com o Internacional levantou questões sobre o Passo d'Areia. Nem tanto pela qualidade do gramado para controle de bola, mas pela elevada temperatura do campo - ainda mais no verão. Mesmo que o São José também tenha investido num sistema de irrigação.

Na ocasião, a equipe de transmissão da RBS TV atestou 61ºC na beira do campo, horas antes do apito inicial. Os donos da casa usaram a irrigação depois, e o termômetro caiu para a casa de 40ºC. Não adiantou muito: com a bola rolando, voltou a subir a passar de 50ºC.

Resultado: bolhas nos pés de alguns jogadores, que trocaram a chuteira durante o confronto e sofreram com hidratação - o episódio enfureceu o Sindicato dos Atletas do Rio Grande do Sul.

As duas partidas seguintes do time como mandante, contra Veranópolis e São Luiz, começaram uma hora mais tarde em relação à do Inter (18h, ainda com horário de verão), sendo que ambas foram disputadas em fim de semana. 

Pela primeira fase da Copa do Brasil (empate sem gols com a Chapecoense, que se classificou), o pontapé inicial foi às 19h de uma quarta-feira, também com o horário de verão ainda aplicado. 

O executivo Luciano Oliveira afirma que o clube não vê problema em apenas disputar partidas noturnas nessa época do ano: "Com relação ao calor, quem direciona a tabela é a federação, de acordo com os diretos televisivos. Não temos força para alterar isso".

Multiuso

O São José, que vai disputar a Série C nacional neste ano, usa gramado sintético desde 2011. Como o estádio é também faz as vezes de centro de treinamento, esse tipo de material se torna essencial em termos de custo-benefício. "Não entendo por que nós brasileiros, com número tão alto de competições, não reconhecerem o gramado sintético como uma realidade", diz Oliveira.

A reforma deste ano ocorreu depois de um estudo constatar que o modelo anterior já estava em condições bem longe das ideais para a prática do esporte, com desnivelamento acentuado. O atual requer manutenção a cada dois dias, com escovação para que o gramado não fique deitado.

São José Copa do Brasil - RAUL PEREIRA/FOTOARENA/ESTADÃO CONTEÚDO - RAUL PEREIRA/FOTOARENA/ESTADÃO CONTEÚDO
Chapecoense encarou o gramado sintético do São José pela Copa do Brasil
Imagem: RAUL PEREIRA/FOTOARENA/ESTADÃO CONTEÚDO

Dois selos

O gramado do Passo d'Areia é apenas um dos nove campos sintéticos brasileiros a apresentar certificado da Fifa. Para comparar, a Conmebol (Confederação Sul-Americana) tem hoje 56 estádios testados e aprovados.

Desses nove campos, três pertencem ao Ceju (Centro Esportivo da Juventude) de Belém-PA, um projeto que faz parte do pacote de legado da Copa 2014 entregue pela federação internacional. 

Sobram, então, apenas outras cinco instalações em todo o país com algum tipo de validação da entidade. São elas: a Arena da Baixada do Athletico, a Arena Maximus de Indaiatuba-SP, a Cidade dos Esportes de Bragança Paulista-SP, e os estádios Jodilton Souza, de Feira de Santana-BA, e o Municipal de São José dos Pinhais-PR.

Dentre essas seis praças, porém, há uma separação. Só a Arena do Athletico e o estádio de Feira de Santana apresentam certificação "Fifa Quality Pro", enquanto os demais receberam o selo "Fifa Quality". Uma brochura de 25 páginas publicada no site da entidade diferencia as nomenclaturas.

O "quality" combinaria "um rigoroso regime de testes de durabilidade, resistência, segurança e desempenho, com gramados que que cumprem requerimentos específicos para futebol recreacional, comunitário ou municipal". Segundo a entidade, é um gramado que permite de 40 a 60 horas de jogo por semana, o que equivale a um mínimo de 26 partidas de 90 minutos.

Já o "quality pro" teria "gramados especificamente testados para simular os requerimentos de alto desempenho e segurança para o futebol profissional".

Quando questionado sobre a diferença nessa descrição, o gerente executivo do São José afirmou que os técnicos que fizeram o exame asseguraram a validade do gramado para competições. O mesmo vale para a CBF.

"Fizemos uma consulta à confederação na hora de mudar o gramado, e eles disseram que a gente precisaria de um gramado certificado pela Fifa. Assim a CBF também fica resguardada", diz Oliveira. 

"A Fifa mandou seus responsáveis pelo laboratório de teste, que verificaram que os movimentos são os mesmos de um gramado natural. Quique da bola, velocidade, travamento de joelhos... Os testes são iguais segundo o técnico que nos visitou."

No documento oficial que trata do assunto, a Fifa afirma que o gramado "quality pro" é exigido apenas para jogos internacionais, entre clubes ou seleções.

Para constar, o gramado sintético foi inserido nas regras oficiais do futebol em 2004. A superfície já foi usada em diversas competições de seleções, com destaque para a Copa do Mundo Feminina de Gr2015 no Canadá 2015. Nenhum dos seis estádios usados no torneio tinham grama natural.

Gramado sintético ainda gera polêmica

São José jogadores - reprodução/RBS - reprodução/RBS
Até mesmo os jogadores do São José sofrem com o calor no Passo D'Areia
Imagem: reprodução/RBS

O piso sintético ainda está longe de ser um ponto pacífico no futebol brasileiro. O caso mais célebre em termos de contenda é o da Arena da Baixada, instalado em 2016. Depois de idas e vindas, especialmente depois de questionamentos pela diretoria anterior do Vasco, o campo só foi aprovado para valer em 2018 pelos 20 participantes do Brasileirão de forma unânime.

À época, reportagem do UOL Esporte mostrou que a maioria dos boleiros aprovava o gramado athleticano. Uma das vozes contrárias foi Odair Hellmann, técnico do Internacional, que afirmou que o campo diferente poderia gerar desquilíbrio.

Na derrota pela terceira rodada do Gaúcho, porém, o treinador colorado procurou dividir a "culpa" pelo resultado. 

"Não existe desculpa pelo gramado", disse. O complemento de sua resposta, porém, acabou revelando certa contrariedade sobre o equipamento do adversário: "O São José está acostumado a treinar aqui? Está. Mas ganhou por acertar um chute na gaveta, por ter ido bem na bola parada. O campo de jogo dificulta a posse de bola. Mas sem desculpas por causa do campo, do calor. Isso é igual para os dois times."