Brasileiros invadem o "soccer" e renovam gestão do futebol nos EUA
Há uma invasão em curso entre Brasil e Estados Unidos. Nos últimos anos, as franquias norte-americanas de futebol - ou soccer, corruptela de "football association", como eles chamam por lá - passaram a buscar no país de Neymar e companhia diversos profissionais de gestão para tentar fazer o esporte decolar de vez na terra de Donald Trump, já projetando a Copa de 2026 nas nações da América do Norte - EUA, Canadá e México.
Os números são promissores e as duas principais ligas do país já fazem inveja ao Brasileirão. Tanto é que a média de público da MLS (Major League Soccer, a liga mais forte dos EUA) já é superior à do Campeonato Brasileiro, com 21.999 pessoas por jogo, contra 18.821 na Série A. Além disso, o time que menos levou gente ao estádio por lá, Columbus Crew, ficaria na 13ª posição do Brasileirão, à frente de Botafogo, Santos, Sport e Athletico, por exemplo.
"Todo mundo sabe que o que se faz aqui, se faz bem feito. Podemos dizer que o futebol e o rúgbi são as últimas duas potências esportivas a serem desenvolvidas nos EUA", conta Roberto Silva, CEO do Austin Bold, da USL (Union Soccer League, a segunda liga mais forte do país e que se cruza com a MLS apenas na Open Cup, copa nacional que dá vaga na ConcaChampions - as ligas não seguem um regime de acesso ou descenso, como no Brasil).
Roberto projeta: "ainda perde um pouco nos direitos de transmissão, mas a MLS é transmitida hoje em mais países do que o Brasileiro, que ficou fechado com a Globo, com os clubes brigando entre si. A MLS terá um salto nos últimos anos".
O brasileiro faz parte de um grupo de executivos que deixaram o país para trabalhar no "soccer", com profissionais em clubes como FC Dallas, San Jose Earthquakes e Orlando City (MLS), além do próprio Bold e de outros clubes menores em ligas amadoras ou semi-amadoras, que fomentam a base do esporte no país.
"Soccer" é outro esporte
Conca, André Lima e Kléber Gladiador são alguns dos atletas do Austin Bold para a temporada 2019 da USL, que se inicia em 9 de março - a MLS teve início no final de semana do dia 2. Como as ligas não têm rebaixamento, parte da visão do negócio que os brasileiros precisam lidar por lá é a de que o jogo é um entretenimento.
"A gente brinca que é preferível perder de 4 a 3 do que ganhar de 1 a 0. É isso que o americano gosta nos esportes, jogos de grande pontuação, entretenimento. Construir uma cultura de soccer numa comunidade com muitos mexicanos, mas com americanos não tão envolvidos com soccer. Foram traçados alguns planos. O modelo é o mesmo que se joga nos EUA, mais rápido, mais metódico", comentou Horácio de Miranda Coutinho, do marketing do Bold.
A captação de atletas também é feita em outros parâmetros. Bruno Costa, do San Jose Earthquakes, é atualmente o chefe do departamento de scout do clube. Após passagens por Fluminense, Figueirense e pelas seleções de base da CBF, ele tenta reunir o que se vê em um atleta no Brasil com o pragmatismo estatístico americano - justamente no clube dos mesmos donos do Oakland A's, equipe de beisebol que ficou mundialmente famosa após o filme "Moneyball - o Homem que mudou o jogo".
"Na formação do elenco existem várias regras: os três jogadores acima do teto, os formados na base, oito vagas para jogadores internacionais, um total de 30 vagas com um valor pré-determinado para cada equipe. É como um quebra-cabeça, você vai formatando, não é uma coisa aberta. Não pode contratar dez jogadores de 10 milhões de dólares", explicou, na contramão do "livre mercado brasileiro", que teve movimentações milionárias para Flamengo e Palmeiras no início de 2019.
Agora no FC Dallas, o executivo de futebol campeão da Libertadores 2017 pelo Grêmio, André Zanotta, apontou outra peculiaridade: "Aqui há o draft, que é a escolha de atletas que saem da universidade, e a MLS, assim como as outras ligas de esportes dos EUA, busca um equilíbrio. Então o pior time do último ano tem a primeira escolha no dia seguinte".
Com isso, há estratégias. "Assim como o Brasil, os EUA são um país continental, cada região tem sua peculiaridade. Vi Neymar, Coutinho, Thiago Silva, William, Pato... isso dá um conhecimento muito grande, de contato visual, de feeling, sabendo identificar o perfil. E depois que você identifica isso, você usa a parte analítica. O um contra um, a individualidade, o atleta que pode perder uma ou duas bolas criando, a gente precisa primeiro ter a análise visual do talento do atleta, para depois partir para os números. Saber a intensidade dele, quantos jogos ele atuou nos últimos anos, se joga uma liga que viaja bastante, por que nos EUA se viaja bastante. Por isso que o sul-americano se adapta bem à MLS."
Já os técnicos brasileiros não têm o mesmo prestígio. "Você raramente vê técnico brasileiro aqui, porque há um entendimento de que técnico brasileiro não funciona", contou Roberto Silva, do Austin Bold, que levou Marcelo Serrano para o cargo: "Todo mundo me liga, 'não vai funcionar', fui massacrado aqui. A questão não é de ser brasileiro e sim de ser bom. O fato é que o perfil do americano gosta mais do estudioso, do cara centrado. Não se preocupa tanto com relações interpessoais da comissão técnica com o jogador. Até o Orlando City, que é todo brasileiro, apostou num britânico", disse, citando o clube de propriedade de brasileiros e que tem como treinador James O'Connor, que na verdade é irlandês e foi jogador na Premier League.
Contraste entre política de clube e "soccer business"
Ex-profissional das duplas Fla-Flu e Atletiba, Roberto Silva apontou a principal diferença - e vantagem - que os brasileiros encontram ao chegarem no futebol dos EUA: "É o modelo geral do negócio. No Brasil tem diretorias políticas, sem comprometimento de longo prazo. Desestimula bons profissionais de se envolverem com o futebol brasileiro. Muda a diretoria e a nova diretoria sequer olha o trabalho: troca todo mundo porque é de outra corrente política. Eu não vejo acontecendo nunca uma profissionalização, por conta do modelo. Os clubes não se ajudam."
Ele relatou dois exemplos. "Eu ligo todo dia para o presidente do San Antonio, que é o rival aqui do lado, e troco ideia para se ajudar, para vender ingressos. Eu estou com um problema com o material esportivo. Chegou atrasado, não consegui ainda colocar as aplicações das marcas. Quem vai resolver para mim é o meu adversário da estreia, o Las Vegas. Eles se ofereceram pra ajudar", comentou, para depois emendar:
"Isso é impensável no Brasil. Fui imprimir no Coritiba os ingressos da final entre Flamengo x Athletico, na Copa do Brasil (2013), que era a mesma empresa de fornecimento, com escritório dentro do Couto Pereira. E a diretoria do Coritiba tentou cancelar o contrato com a empresa por que estávamos imprimindo ingressos do Athletico no Couto Pereira. Se você contar isso para um americano, ele não vai entender."
Outro item fundamental para o futebol brasileiro e que tem sido destaque nos EUA é a exportação de jogadores. Base de sustentação no Brasil, a venda de atletas começa a ser destaque também por lá.
"Os EUA venderam US$ 60 milhões nessa janela de janeiro. A Liga se preparou para ser exportadora. O (meia paraguaio Miguel) Almiron foi para o Newcastle, o (atacante canadense) Alphonso Davies para o Bayern de Munique. A Liga também atrai os grandes talentos sul-americanos. O (meia argentino Ezequiel) Barco saiu do Independiente e o Pity Martinez, ex-River, também foi pro Atlanta United.
Um executivo de futebol pode faturar até 350 mil dólares por ano no mercado norte-americano. Valor que fica próximo ou até menor do que de alguns clubes da Série A nacional. Entretanto, a estabilidade é incomparavelmente maior. "Não tem uma cultura de rivalidade, como temos aí. De não auxiliar, de até boicotar... aqui os clubes se dão bem, são parceiros, dentro do que é permitido fazer. A gente parte de um princípio que é uma empresa", comentou Horário.
E é essa a contribuição maior dos brasileiros, de acordo com Zanotta, do FC Dallas: "Como a gente nasce respirando futebol, nós sul-americanos, nossa relação com o esporte é diferente da dos americanos. Mas o soccer é o esporte que mais cresce e esse público lá na frente vai consumir o futebol. Nós temos essa ligação muito dentro da gente e nos dá uma experiência diferente, e essa troca do americano saber lidar com a organização do negócio, do evento, não existe lugar no mundo em que se trabalha com esse profissionalismo. Essa mistura tem ajudado muito o desenvolvimento."
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