Prostituição, álcool e violência: como é a noite onde Valdiram morreu
A degradação a que Valdiram Caetano Morais chegou é refletida no local onde ele foi assassinado. Na mesma calçada em que o ex-atacante do Vasco foi espancado até a morte na semana passada, moradores de rua dormem em meio a jornais velhos, com itens pessoais se misturando a garrafas plásticas de cachaça. É o lado alcoólico da rua Santa Eulália, na zona norte de São Paulo.
A calçada oposta é diferente. É o território da luxúria. Prostitutas usam roupas minúsculas para chamar a atenção dos motoristas. Valdiram tinha estes dois vícios, sexo e bebida. E era sempre visto perambulando pelas redondezas.
As marcas do terceiro vício estavam no corpo. Esquelético, tinha os ossos aparentes escondidos da vista das pessoas por farrapos sujos. O vigilante do pronto-socorro que fica na esquina da rua onde o ex-jogador foi morto conta que Valdiram estava cada vez mais debilitado pelo crack. "Só pele e osso", descreveu. Os moradores de rua ouvidos pela reportagem endossam estas palavras.
Em matéria do Lance de 2015, Valdiram afirmou que conheceu na rua a face da morte. Não precisava ser astuto nem estar sóbrio para perceber a ameaça. O ex-atacante não negou seus erros em seu último momento de lucidez, quando recebeu ajuda do Vasco. A família também não nega a realidade.
"Ele caiu no mundo da prostituição, drogas e acabou perdendo tudo", contou o irmão Wagner Melo à TV Asa Branca, afiliada da Globo, no velório do ex-jogador na cidade natal, em Canhotinho (PE).
Depois do assassinato, perguntar sobre Valdiram faz as pessoas ficarem desconfiadas na rua Santa Eulália. Ninguém quis se identificar. "Alguém pode ter visto algo, mas ninguém vai falar", avisou um vigilante do Centro de Controle Zoonoses.
A frase se aplica inclusive a seu colega de trabalho que estava no turno da madrugada de sexta passada. Cerca de quarenta passos separam a guarita do ponto em que o corpo foi encontrado.
Comerciante há 20 anos, uma mulher se assustou ao saber que em 2006 o morador de rua foi artilheiro da Copa do Brasil pelo Vasco. "Vi ele algumas vezes sentado, sozinho na rua. Nem de longe lembrava o moço da foto da internet que vi. Não dava para reconhecer".
Em São Paulo, a prefeitura tem registros de atendimento social a Valdiram entre julho de 2018 e janeiro de 2019. O último contato ocorreu no Centro de Acolhida Zaki Narchi, que fica a cinco minutos a pé de onde ocorreu o assassinato, mas é um lugar muito mais sinistro.
Os carrinhos de supermercado que transportam o reciclado que será trocado por dinheiro miúdo ficam estacionados na calçada antes do portão de entrada. A mesa de tênis de mesa, o pebolim e a biblioteca da recepção não combinam com a rotina do local.
À meia-noite de segunda para terça, quando a reportagem permaneceu 20 minutos no local, ocorreu a seguinte cena.
Um homem em pé junto aos carrinhos de supermercado grita palavras desconexas: "Shalaba, arghh, bló, bló. bló". Ele abre e fecha a mão imitando uma boca falando direto para seu ouvido direito.
Ao mesmo tempo em que ele estica o braço para o lado e gira com força, em movimento que lembra crianças brincando, o homem grita tão forte que as veias do pescoço saltam: "ele vai vir em forma de um menino. Um meninoooooo".
Um morador de rua se aproxima para conversar. Os delírios são tão extremos que o homem deita no chão e começa a resmungar: "não me mate, não me mate".
O vigilante conta que é assim toda noite. Não se passaram 10 minutos quando outro morador de rua dá sinais de surto. "Se eu não te matar esta noite, quero ser um f.... Tá ouvindo? Vou enfiar uma bala na tua cara".
Num gesto mecânico que aponta a frequência com que frases como estas são repetidas, o vigilante pede para ele se acalmar. Caso contrário, será expulso.
Os funcionários do CTA Vila Maria vão administrando o caos entre pessoas longe da realidade. Eles só querem evitar mortos e feridos. Tanto faz se os envolvidos eram diplomados, doutores ou jogadores de futebol. Os vícios levaram Valdiram para um lugar que seu passado não importa.
Em nota, a Secretaria Municipal de Assistência de Desenvolvimento Social afirmou que o ex-atacante só aceitou vaga para dormir em um dos centros de acolhimento e negou a maioria de ofertas da assistência social.
"O ex-jogador foi atendido pelas equipes do Serviço Especializado de Abordagem Social (Seas) Casa Verde, Sé, Santa Cecília e Santana, desde julho de 2018 até início de 2019, tendo recusado a maioria dos atendimentos. Além disso, ele passou pela rede direta - Centro de Referência Especializado para População em Situação de Rua (Centro Pop) Santana e de Vila Maria", diz a nota enviada ao UOL Esporte.
A lei do mais forte impera
A faixa zebrada amarela indicando o isolamento de um local de crime da polícia ainda está na calçada indicando o ponto exato do assassinato. Não deve sair de lá tão cedo. Lixo é uma marca do local. Assim como o cheiro de fezes.
A pichação em um muro contém códigos fáceis de serem interpretados por quem mora na rua. O desenho de uma arma ao lado dos nomes Dadinho e Bené são referência aos bandidos do filme Cidade de Deus. O número 1533 é uma assinatura do PCC, facção criminosa, que tem o nome escrito no local. Um iniciado na linguagem do crime constata que o palhaço desenhado remete aos assassinos de policiais.
A investigação
Os moradores de rua pouco falam do assassinato de Valdiram, mas ao mencionar a morte ressaltam: "Ninguém morre de graça na rua. Se morreu assim, é porque alguma coisa fez".
A declaração remete a uma linha de investigação da Polícia Civil. "O DHPP (Delegacia de Homicídios) investiga a motivação da morte de Valdiram Caetano de Morais. Todas as circunstâncias referentes aos fatos são apuradas, inclusive a eventual participação do jogador em outro crime", informou nota da Secretaria de Segurança Pública.
Os problemas de Valdiram durante a carreira
Valdiram se envolveu com drogas, foi acusado de esfaquear um homem e de tentar de estuprar uma mulher quando jogou no Belenense, em Portugal, na temporada 2003/2004. Antes, admitiu que bateu na namorada quando jogava e morava em Mirassol (SP).
O jogador assumiu o que aconteceu à imprensa na época, em entrevista ao O Jornal, de Maceió. "Eu estava saindo com a garota há pouco tempo, discutimos e, como eu estava embriagado, acabei batendo nela", afirmou.
Em Alagoas em 2003, foi acusado de também tentar estuprar uma vendedora.
Jogando no Comercial-AL em 2014, teve uma recaída. Em entrevista ao UOL Esporte na época, treinador e dirigente do clube afirmaram que Valdiram teve problemas com a dependência química e chegou ser acusado de furtar celular na concentração.
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