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Primeira árbitra do mundo teve ajuda do governo militar para poder apitar

Lea Campos, primeira árbitra de futebol do mundo - Livia Wu
Lea Campos, primeira árbitra de futebol do mundo Imagem: Livia Wu

Debora Luvizotto

Do UOL, em São Paulo

24/05/2019 12h00

Lea Campos fez um curso de arbitragem na Federação Mineira de Futebol em 1965. Foram oito meses de aprendizado. Conseguiu passar em todos os testes: o escrito e o físico, sem nenhum problema. No entanto, na véspera de receber seu diploma, teve a notícia de que a Confederação Brasileira de Desportos (CBD) havia vetado sua diplomação.

Ela poderia ser a primeira mulher a se tornar árbitra profissional no planeta. Mas não aconteceu. "Conversei com o presidente da Federação na época. Ele me informou que o (João) Havelange disse que não poderia me tornar árbitra porque a Constituição Brasileira proibia. A Lei não permitia que mulheres jogassem alguns esportes, mas não mencionava apitar futebol. E era isso que queria".

Lea passou quatro anos tentando a liberação de seu registro. "Na época, o Havelange me disse: 'Enquanto eu for o presidente da CBD, nenhuma mulher joga, apita, bandera, dirige, não faz nada dentro do futebol, porque eu não quero'".

Imagem do Museu do Impedimento de Lea Campos - Acervo Pessoal Lea Campos/ Michael Jackson - Fotógrafo Desconhecido - Acervo Pessoal Lea Campos/ Michael Jackson - Fotógrafo Desconhecido
Imagem do Museu do Impedimento de Léa Campos
Imagem: Acervo Pessoal Lea Campos/ Michael Jackson - Fotógrafo Desconhecido

Mesmo assim, não desistiu. Conseguiu uma entrevista com o então presidente do Brasil, o general Emílio Garrastazu Médici. "Ele fez um bilhete de próprio punho para que o Havelange liberasse o meu diploma, que era um direito que eu havia adquirido".

Durante um evento de despedida de Pelé da seleção brasileira, em 1971, ela brigou até conseguir entregar a carta em mãos para presidente da CBD. Quando conseguiu, Havelange anunciou, em coletiva de imprensa, a oficialização da primeira árbitra de futebol feminino do mundo, como fruto de sua gestão.

Era o reconhecimento da luta de Lea Campos. Mas só gerou irritação. "Ele me prejudicou por quatro anos e acabou me colocando de bandeja para o mundo esportivo. A partir daquele momento, eu passei a dividir as manchetes de jornais com o Pelé".

Hoje, Lea vê evolução no futebol feminino, mas destaca que ainda tem muito a melhorar. "Falta que os empresários e as pessoas que lidam com futebol entendam que a mulher também é capaz de dar espetáculo em campo. Desde que criaram a Lei que obriga os clubes profissionais a terem equipe feminina, melhorou um pouco, mas ainda falta muito chão para caminhar. Infelizmente, ainda perdemos nossas melhores jogadoras para o exterior".

Sua história só foi possível porque ela não desviou seu foco em momento algum. "Desistir? Nunca! Quando coloco algo na minha cabeça, enfrento trancos e barrancos, mas chego lá. Sempre fui teimosa, obstinada. Por isso, consegui chegar onde cheguei".

O Museu do Impedimento

A saga de Lea é uma das várias histórias que compõe o Museu do Impedimento (museudoimpedimento.com), um site colaborativo fruto da parceria entre Google Arts & Culture e Museu do Futebol para retratar os anos de proibição do esporte para as mulheres no país, que ocorreu entre 1941 a 1979. O lançamento ocorre a duas semanas da abertura da Copa do Mundo de futebol feminino, na França.

"Achei maravilhoso o Google levantar essa bandeira do futebol feminino. As histórias vão ser divulgadas, desde o surgimento do esporte no Brasil até os dias de hoje e isso é muito importante", declarou Mariléia dos Santos. Não sabe quem é Mariléia? Ela é mais conhecida como Michael Jackson, maior artilheira do futebol brasileiro.

Mariléia dos Santos, a Michael Jackson - Livia Wu - Livia Wu
Imagem: Livia Wu

"Michael Jackson"

Michael Jackson marcou 1574 gols em sua carreira. Foram 12 anos servindo a seleção brasileira e, mesmo assim, a história da maior artilheira do futebol feminino brasileiro se mantém ofuscada. "O preconceito no futebol sempre existiu, ainda mais por ser mulher e negra. Era ruim, mas eu não tirava o foco do meu objetivo, que era jogar bem. Quanto mais preconceito tinha, mais eu queria mostrar bons resultados", contou.

A paixão dela pelo esporte começou desde criança, quando ainda morava na cidade de Valença, no interior do Rio de Janeiro. "Somos em 11 irmãos e eu sou a caçula. Com exceção da minha mãe, todos em casa jogavam futebol. Quando eu acordava, já estavam jogando em um campo que tinha lá perto. Meninos e meninas jogavam todos juntos".

"O Brasil evolui bastante. Hoje, nós temos as categorias de base, que são excelentes. Desde que comecei a jogar, sempre fui remunerada. Jogava pelo Esporte Clube Radar, que até hoje é um dos melhores times que já existiu. Então, sempre recebia meu salário em dia, mas vários clubes não pagavam e tinha esperança que um dia isso iria profissionalizar. Sei que não são todas jogadoras que conseguem isso, até hoje".

Apesar dos impedimentos de ser jogadora nos anos 1980 e 1990, ela não se via seguindo outra carreira. "Nunca pensei em desistir. Eu gostava de jogar de futebol, estava na minha veia, era o que eu sabia fazer muito bem. Meu foco sempre foi lutar por isso".