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Clubismo é fascismo? Cachecol de colorada agressora gera confusão e debate

Torcedora do Grêmio é agredida por colorada com cachecol costurado "antifascista" - Reprodução
Torcedora do Grêmio é agredida por colorada com cachecol costurado "antifascista" Imagem: Reprodução

Lucas Faraldo

Do UOL, em São Paulo

22/07/2019 12h00

Passou despercebido para muita gente um detalhe nas cenas de violência registradas nas arquibancadas do Beira-Rio no empate entre Internacional e Grêmio, no último sábado: a mais enérgica torcedora do Internacional que aparece nas imagens agredindo uma mulher e uma criança gremistas usava um cachecol colorado com a bandeira símbolo do antifascismo e o termo "antifascista" costurados.

Ora, mas não seria contraditório alguém se intitular antifascista e protagonizar episódio de violência por aparente motivo de intolerância clubista? O tema é polêmico e, além da natural confusão, gera debate entre especialistas em questões sociais, humanitárias e políticas ligadas ao futebol e ouvidos pelo UOL Esporte.

Antifascismo é, em resumo, um movimento de oposição ao autoritarismo e às demais características que marcam o fascismo. Apesar de originados há quase cem anos, na ocasião da proliferação de ideais de ditadores como Benito Mussolini, na Itália, e Adolf Hitler, na Alemanha, antifascistas assim se autodenominam até hoje em referência a questões político-sociais características dos tempos contemporâneos.

No futebol, há clubes que se autodenominam antifascistas junto com suas torcidas, como o St. Pauli, da Alemanha, e o Livorno, da Itália. No Brasil, a primeira torcida organizada antifascista foi criada em 2005: a Ultras Resistência Coral, do Ferroviário-CE.

"Nem guerra entre torcidas, nem paz entre as classes", diz faixa da Ultras Resistência Coral - Divulgação - Divulgação
Imagem: Divulgação

O episódio que roubou a cena no clássico gaúcho da 11ª rodada do Campeonato Brasileiro teve uma mãe e seu filho, torcedores do Grêmio, vítimas de agressão e tentativa de roubo (camisa), expulsos por torcedores do Internacional, debaixo de empurrões e xingamentos, de um setor destinado exclusivamente à torcida da casa no Beira-Rio. A situação foi precedida de uma dança da mulher e da criança, que exibiam a camisa gremista em direção a outros tricolores - ou seja, este não teria sido um ato de provocação.

Professor da UNICAMP, coordenador do Grupo de Estudos e Pesquisas em Esporte e Humanidades e integrante do Laboratório de Pesquisa em Educação Física e Humanidades da UNICAMP e do Núcleo Interdisciplinar de Estudos Sobre Futebol e Modalidades Lúdicas da USP, Sérgio Settani vê traços fascistas no comportamento da torcedora que, curiosamente, ostenta cachecol com posicionamento antifascista.

"É uma imagem forte e contraditória. Uma mulher com o cachecol do antifascismo sendo exatamente o inverso disso, tendo uma atitude autoritária, fascista, querendo agredir porque não consegue conviver com o outro. A rivalidade do jogo não significa a morte do outro. Pelo contrário: para ter a rivalidade, você necessita que o outro exista. A partir daí se gera disputas no campo futebolístico", explicou o professor.

"Fico imaginando a sensação daquele menino quando a mãe voltar a falar para ele sobre assistir a um jogo no estádio. É algo muito pesado. A torcedora do Inter em questão e os demais que ali também agrediram fizeram um grande desserviço a tudo e a todos quando tiveram essa atitude", completa.

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Já Irlan Simões tem opinião um pouco diferente. Responsável pelo podcast "Na Bancada", sobre política no futebol, escritor do livro "Clientes Versus Rebeldes", sobre diferentes perfis de torcedores, e estudioso de temas como violência no futebol, torcida organizada, política de segurança para estádios, entre outros, ele evita classificar os distintos personagens da confusão como certos ou errados. A presença da mãe e seu filho, com vestimenta do Grêmio, em um setor de torcedores colorados num estádio em que havia espaços propriamente destinados a torcidas mistas, foi destacada pelo especialista.

"A primeira coisa que pensei quando vi a cena: por que aquela mãe estava ali com uma criança, com a camisa do Grêmio, sendo que havia um setor destinado a torcida mista? Não há nada que justifique a agressão que ela sofreu, mas no futebol você sempre tem de agir do ponto de vista da contenção de algum tipo de problema", analisa, fazendo menção a medidas preventivas no combate à violência.

"Não falo em coerência e incoerência, pois somos todos seres humanos que podem perder a cabeça e atuar dessa forma. Não se justifica, mas nenhum de nós está imune. Se dá para tirar alguma lição dessa situação, é que ninguém está imune à violência no futebol, ninguém está impassível de praticar. (Mas) Há uma questão de padrão moral que estamos vivendo também. É simplesmente inaceitável que uma mãe com criança seja abordada daquela forma violenta e agressiva. No máximo, você pode chegar e dialogar. São duas pessoas vulneráveis. Por sorte não eram homens mais violentos cometendo aquela agressão", pondera.

Ponto em comum nas argumentações de Settani e Simões é que a violência no futebol vai além do estereótipo que costuma associar simplória e muitas vezes equivocadamente tais episódios a torcidas organizadas.

"É importante termos esse debate nesses marcos porque ele que vai auxiliar a gente a pensar a violência em outros setores, no mundo. A violência no futebol não está restrita às torcidas organizadas, todos os torcedores podem praticar essa violência inclusive contra seus próprios torcedores", alerta Simões.

"A cena é lamentável, condenável, alimenta todo um debate que vem forte, um imaginário de que não pode haver convivência entre torcidas diferentes. E ainda é uma cena que rompe com uma série de estereótipos de que no futebol a violência está ligada diretamente aos homens, embora haja sim o domínio masculino e a cultura machista impregnada. Mas essa mulher carrega todos esses estereótipos da violência, da não compreensão do outro", acrescenta Settani.

Clubismo é uma forma de fascismo, prega a torcida Grêmio Antifascista

Brigas entre torcedores de clubes rivais talvez sejam a forma mais explícita e brutal de externar o que tem se popularizado nos últimos tempos como clubismo. Usado para denotar condição patológica (entre outras utilizações), o sufixo "ismo" já pode ser interpretado como indicativo de que o termo, em essência, não representa algo bom - é assim, por exemplo, na briga etimológica da militância LGBT, que condena o uso do termo "homossexualismo", visto como pejorativo (o correto é homossexualidade).

E é exatamente o clubismo que acaba apontado como vilão, no caso de violência do último Gre-Nal, pela torcedora gremista Soraya Bertoncello, que faz parte da torcida Grêmio Antifascista e também conversou com a reportagem.

"Nós, enquanto antifascistas, combatemos nossa leitura de fascismo hoje em dia. O que é o fascismo para nós? Essa tentativa de eliminação, supressão de qualquer diferença. Para a Grêmio Antifascista, o clubismo é sim uma forma de fascismo no momento em que enxergo o meu rival como um inimigo não a ser derrotado dentro de campo mas sim a ser extinto", diz, antes de falar especificamente sobre o episódio do Beira-Rio:

Soraya é torcedora do Grêmio e membra da Grêmio Antifascista - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Imagem: Arquivo pessoal

"Então o que tem de absurdo na cena? Quererem a extinção de pessoas diferentes. Nosso movimento condena o clubismo, julga a atitude daquelas pessoas (colorados que agrediram a mãe gremista) absurdamente clubista e acha que, no momento em que ela utiliza aquele cachecol, deixa a situação ainda mais absurda."

Ponto também levantado por Soraya é o (des)entendimento do conceito de antifascismo. Recentemente no Brasil o debate envolvendo o que é ou não uma atitude fascista ganhou força em meio às discussões políticas entre apoiadores e opositores do presidente Jair Bolsonaro desde a época em que ele ainda era candidato.

"O que é fascismo para aquela torcedora do Internacional? De repente para ela é fascismo o torcedor gremista que canta macaco, mas não é fascismo o torcedor do Internacional que canta 'eu vou matar um puto tricolor'. Para nós, os dois são igualmente errados, e nenhum crime, racismo ou homofobia, nenhum crime é mais ou menos crime do que o outro", argumenta, em referência ao uso do termo espanhol puto como ofensa homofóbica numa música da torcida colorada.

"Muitas pessoas não entendem o que é antifascismo. É legal ser antifascista, né? Ainda mais com Bolsonaro na presidência. 'Acho Bolsonaro um lixo então vou me considerar antifascista'. E às vezes elas não vão a fundo no que isso implica também além de não gostar do governo", afirma.

Colorada do cachecol não integra coletivo Inter Antifascista

Procurado, o coletivo Inter Antifascista, responsável pela confecção do cachecol utilizado pela colorada protagonista das agressões, preferiu não responder as questões da reportagem. O grupo de torcedores do Inter preferiu publicar nota oficial nas redes sociais após a solicitação de entrevista do UOL Esporte. Foi apurado que a torcedora flagrada nas cenas de violência do Beira-Rio, apesar de vestir a peça, não faz parte do coletivo.

"O pessoal da Inter Antifascista não tem controle sobre quem compra esse material. É um risco que eles estavam correndo", comenta Soraya, da Grêmio Antifascista. Cabe aqui ressaltar que, diferentemente da cultura habitual de arquibancada, torcidas antifascistas, mesmo que de clubes rivais, são normalmente parceiras.

"Provavelmente essa torcedora do Internacional não faz nem ideia do que significa o movimento antifascista", opina Settani. "Afinal, tem sido uma marca dessas torcidas trabalhar em conjunto com os rivais em prol de uma causa muito maior."

"O fato de ela adquirir algo escrito antifascista indica que ela provavelmente se identifica de alguma forma a essa bandeira, o que não faz também com que ela esteja imune aos tipos de efeitos emocionais causados pelo futebol, pela rivalidade de um clássico, jogando contra seu maior rival", finaliza Simões.

Errata: este conteúdo foi atualizado
Diferentemente do que foi publicado na versão anterior deste texto, a torcedora agredida não agitou a camisa do Grêmio na direção de torcedores do Internacional. A informação correta é de que ela teria exibido a peça para outros gremistas presentes no estádio. O texto foi corrigido.
A versão anterior do texto também dizia que a torcedora agredida teria "provocado" os rivais. A dança das vítimas não teve caráter provocativo, já que mãe e filho interagiam com outros torcedores gremistas. A informação foi corrigida.