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Bahia revoluciona causas sociais no futebol e inspira até rival da Série A

Bahia fez campanha sobre crianças sem registro paterno - Reprodução/ TV Bahêa
Bahia fez campanha sobre crianças sem registro paterno Imagem: Reprodução/ TV Bahêa

Lucas Faraldo

Colaboração para o UOL, em São Paulo

06/08/2019 04h00

O próximo domingo é de comemoração do Dia dos Pais. Na correria entre compromissos diários, busca por presentes, tentativa de melhor adequar a agenda dos parentes e até preocupação com seu time, você pararia para pensar no problema de abandono paterno que aflige mais de 5 milhões de crianças brasileiras em cujas certidões de nascimento não consta o nome do pai? Pois o Bahia deu uma forcinha para que seus torcedores refletissem justamente sobre isso e ajudassem crianças nesta situação.

O clube publicou em seus perfis nas redes sociais um vídeo de campanha de Dia dos Pais, alertando para o alto número de possíveis torcedores mirins sem chance de compartilharem com figuras paternas o amor que sentem pelo futebol e por seu time de coração.

A sensibilidade de relacionar o esporte mais popular do país a assuntos de relevância social e humanitária tem se tornado regra entre os tricolores baianos há um ano e meio, quando o clube passou a dar atenção especial a causas sociais. Está por trás disso o Núcleo de Ações Afirmativas do Bahia.

"Surgiu em janeiro de 2018 dentro de um projeto de rever a nossa relação com a torcida, que estava afastada, principalmente o torcedor de menor poder aquisitivo. Salvador é uma cidade com desenvolvimento econômico pequeno. Somos formados por torcedores e habitantes de baixa renda. E essas pessoas estavam excluídas dos estádios, principalmente depois dos fenômenos de arenas no país", explica ao UOL Esporte o presidente do Bahia, Guilherme Bellintani.

"Ultrapassou essa relação do Bahia com a torcida e assumiu gradativamente um papel de canal de comunicação de causas humanitárias, de razão social, sobre as quais achamos importante nos posicionar", acrescenta.

O abandono paterno é apenas uma das feridas em que o Bahia não tem medo de colocar o dedo. Em questão de meses, o clube já se posicionou sobre diversas causas, desde questões mais amplas como machismo, racismo e homofobia a específicas como lentidão da demarcação de terras indígenas e intolerância religiosa.

Rumo aos dois anos de existência, o Núcleo de Ações Afirmativas é composto por funcionários do Bahia e voluntários. A coordenação é dividida em duas frentes principais: gerência de comunicação e diretoria de planejamento. Dependendo do tema a ser discutido, o clube procura militantes e especialistas nas causas e passa semanas, às vezes até meses, debatendo internamente os assuntos.

No caso da campanha mais recente, a Defensoria Pública da Bahia é parceira do clube de Salvador. O presidente Guilherme Bellintani assegura não haver isenção fiscal ou qualquer benefício do tipo como contrapartida. "Essas parcerias são espontâneas. O que buscamos é usar o futebol para canalizar coisas de melhorias sociais na vida das pessoas", afirma.

Em relação ao vídeo de abandono paterno, havia conversa em curso entre Bahia e Defensoria com foco no atendimento jurídico a quem não têm acesso a advogados, no que pode se tornar uma interlocução do clube em comunidades baianas. Em meio a tais conversas, surgiu a hipótese de uma parceria para o Dia dos Pais.

"Com o crescimento do núcleo, somos procurados por muitas instituições ou a gente mesmo procura e é bem recebido porque já conhecem nossos outros trabalhos. O elemento positivo de cada campanha torna a campanha seguinte mais atraente, mais fácil de ser estruturada", conta o presidente.

O limiar entre lucrar e não elitizar

O Núcleo de Ações Afirmativas nasceu com primeiro foco no combate à elitização do futebol, fenômeno que afeta torcedores menos afortunados, não só no Brasil como em diversos outros lugares do mundo nos últimos anos. Paralelamente, as campanhas sociais protagonizadas pelo núcleo têm sido revertidas em camisetas e demais produtos que são colocados à venda para a torcida. Como se equilibrar nessa aparente corda bamba?

"O clube não tem fins lucrativos, mas precisa lucrar. Isso não é escondido. O Bahia é um clube com restrições financeiras muito grandes. Herdamos de gestões mal feitas e fraudulentas uma dívida enorme. E mais do que isso: temos que nos manter. Então, as coleções [de camisetas] têm, sim, um viés de retorno financeiro, mas o que procuramos mostrar é que é possível ter retorno financeiro com produtos populares", argumenta Bellintani.

Recentemente o clube lançou linha de camisas de fabricação própria, o que possibilitou ofertas mais populares à torcida. Camisas hoje vendidas por R$ 100, de marca "caseira", rendem R$ 10 de royalty por peça. Tal valor é o mesmo das fabricadas pela antiga fornecedora esportiva e vendidas por R$ 220.

Uniforme do Bahia é de fabricação própria - Felipe Oliveira / EC Bahia - Felipe Oliveira / EC Bahia
Uniforme do Bahia é de fabricação própria
Imagem: Felipe Oliveira / EC Bahia

Há também no Bahia planos de sócios-torcedores mais baratos de acordo com comprovação de renda. Os ingressos na Fonte Nova também são considerados populares. A R$ 22, o clube de Salvador tem a quarta menor média de preço de bilhete entre os 20 clubes da competição na atual edição do Campeonato Brasileiro -- atrás de Cruzeiro, Fortaleza e Ceará.

"Com a inclusão de torcedores que estavam fora do escopo econômico do clube, conseguimos melhorar a performance de rendimento econômico do clube. Pessoas que não eram vistas como consumidores hoje são vistos, e com preços que dialogam com a renda deles. É uma forma de incluir aqueles que eram considerados desinteressantes. E isso de forma não exploratória, não abusiva", afirma o presidente.

"Podemos ganhar menos em cima de um para que a soma do todo seja interessante. Menos de cada um, mas incluindo muito mais gente", sintetiza.

Inter se inspira no Bahia e cria diretoria de inclusão

Inspirado no Núcleo de Ações Afirmativas do Bahia, o Internacional criou há pouco mais de um mês uma diretoria de inclusão social. O setor é dirigido por Najla Diniz, conselheira que trabalhou por dois anos e meio na ouvidoria do clube.

O trabalho burocrático de receber demanda da torcida e repassá-la a diversos setores da agremiação combinado à atuação particular num grupo de torcedores de diversos cantos do país chamado Futebol, Mídia & Democracia fez com que ela se inspirasse no tricolor baiano para criar a diretoria.

"O Inter tem esse nome, Sport Clube Internacional, porque foi criado numa época em que negros, estrangeiros, proletários em geral não tinham espaço para jogar nos clubes tradicionais de Porto Alegre. A xenofobia é dos piores tipos de discriminação. Então, resolveram fundar um clube que agregasse todas essas diferenças. Isso é a história do Inter", conta Najla, em conversa com o UOL Esporte.

"Nosso principal escopo, enquanto diretoria de inclusão social, é trabalhar preconceitos. Que seja uma política permanente, não uma coisa de uma gestão só. Esse é o maior legado que podemos deixar com essa diretoria", acrescenta.

Hoje a diretoria comandada por Najla é agregada à vice-presidência de relacionamento social do Internacional e trabalha em conjunto com outras vice-presidências do clube. Lançada em 28 de junho, a diretoria contou com sua primeira ação afirmativa naquele mesmo dia, data em se celebra o Dia do Orgulho LGBT+. O estádio do Beira-Rio foi iluminado com as cores do arco-íris, e um vídeo sobre diferentes formas de amar foi publicado nas redes sociais coloradas.

Outras ações já foram feitas nessas primeiras semanas e há novas sendo planejadas. Numa das noites mais frias do ano em Porto Alegre, o Internacional se juntou ao Grêmio e a entidades civis, inspirado em ação similar feita recentemente pelo River Plate na Argentina, para oferecer a moradores de rua o ginásio anexo ao Beira-Rio naquela que ficou conhecida entre os gaúchos como "A Noite dos Desabrigados".

"Muitas ações e muitas frentes para essa torcedora utopista", brinca Najla, antes de concluir: "Em outubro, jogaremos lá em Salvador contra o Bahia pelo Brasileiro. Pretendo me reunir presencialmente com eles e ver no que podemos colaborar um com o outro."

O apito inicial para uma espécie de "rede do bem" no futebol brasileiro entre os clubes de elite do país já foi soado. E o melhor: é o tipo de jogo sem número máximo de participantes e no qual todos só têm a ganhar.

Veja 5 ações afirmativas divulgadas pelo Bahia em 2019:

Abandono paterno

Às vésperas do Dia dos Pais, o Bahia lançou vídeo no qual um torcedor mirim escreve cartas ao pai contando detalhes sobre sua infância em recortes relacionados ao Bahia e ao próprio futebol. Nos textos, o garoto enfatiza a figura "de mãinha". E a história ganha desfecho quando é revelado que as cartas jamais saem rumo ao destinatário: o pequeno torcedor não tem pai registrado.

"5,5 milhões de crianças no Brasil não possuem o nome do pai no registro", alertou o Bahia.

Assédio contra mulheres

No Carnaval, o Bahia, em parceria com o governo do estado, publicou vídeo associando o assédio contra as mulheres nos blocos e micaretas a entradas faltosas violentas no futebol. "Assédio é falta grave nesse Carnaval", "Não é não!" e "Respeita as minas" foram algumas das frases lançadas pela campanha na ocasião.

Pouco mais de um mês depois, o Bahia foi procurado por uma agência de publicidade para criar um site no qual seria possível as torcedoras relatarem casos de assédio pelos quais tenham passado nos estádios. Também houve distribuição de material impresso e virtual para os torcedores visando a conscientização no combate à violência contra a mulher.

Intolerância religiosa

No Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa, o Bahia anualmente se posiciona contra a discriminação. Um dos estados mais miscigenados do Brasil, a Bahia tem enaltecidas pelo clube tricolor as mais variadas crenças e até "a crença de não crer". O volante Feijão, adepto do candomblé, jogava na equipe em 2017 e sofreu com preconceito na época, sendo vítima de comentários discriminatórios nas redes sociais.

"Bahia de todos os santos, de todos os orixás, de um único Deus, de todas as crenças - ou de nenhuma. Bahia de todos e de todas", reforça o clube em seus perfis oficiais.

Homofobia

Um dos pioneiros entre clubes de futebol do Brasil a se posicionar nos últimos anos contra a homofobia, o Bahia aproveitou o último mês de maio para reafirmar seu lado na luta contra a discriminação: "O Dia Internacional de Combate à #LGBTfobia marca a extinção do termo 'distúrbios de sexualidade' como doença na OMS", escreveu a agremiação.

Uma camisa com a frase "Não há impedimento" acompanhada de faixa com as cores do movimento LGBT foi lançada pelo clube na ocasião, colocada à venda em modelos masculino e feminino. Foi a primeira peça do que hoje já se tornou uma coleção de camisas com estampas de ações afirmativas.

Lentidão da demarcação de terras indígenas

Na semana do Dia do Índio, o Bahia cobrou das autoridades urgência na demarcação de terras indígenas. Por meio de um vídeo no qual compara a luta dos índios pela sobrevivência a uma partida de futebol, foi mostrado que não há jogo sem a demarcação -- seja das linhas de cal, seja dos limites geográficos que dificultariam o avanço de fazendeiros e os consequentes conflitos de terras que penalizam a população indígena do Brasil há séculos.

"Nossa partida é a nossa luta. Nossas vidas estão em disputa. É preciso cumprir a regra. Sem demarcação, não tem jogo", se posicionou o Bahia, seguindo com a hashtag #DemarcaçãoJá.