Buffon relembra problema com policiais, ídolo camaronês e lema fascista
O site Players Tribune, conhecido por seus relatos em primeira pessoa de grandes personalidades do esporte a respeito de suas vidas e carreiras, divulgou hoje um texto assinado pelo goleiro italiano Gianluigi Buffon, da Juventus. Aos 41 anos, Buffon escreve a sua versão mais jovem, de 17 anos - justamente quando começou sua carreira profissional no Parma.
Com "boas e más notícias" ao jovem Buffon, o goleiro conversa consigo sobre sua alma. E relembra problemas que teve no início da carreira profissional.
"Vamos começar com as más notícias. Você tem 17 anos. Você está prestes a se tornar um jogador de futebol de verdade, como nos seus sonhos. Você acha que sabe tudo. Mas a verdade, meu amigo, é que você não sabe nada", escreveu.
"Em apenas alguns dias, você terá a chance de começar sua primeira partida da Serie A pelo Parma e não sabe o suficiente para se assustar. Você deveria estar na cama, bebendo leite morno. Mas o que você vai fazer? Você vai à boate com seu bom amigo da categoria de base."
"Você só vai tomar uma cerveja, certo?"
"Mas então você exagera um pouco. Você interpreta o personagem do filme. O homem forte. É assim que você geralmente lida com essa pressão que você nem sabe que sente. Em breve, você estará fora do clube, discutindo com alguns policiais à 1h da manhã."
"Apenas vá para casa. Vá para a cama."
"E por favor, eu te imploro, não mije na roda do carro da polícia. Os policiais não acharão divertido, o clube não achará divertido, e você arriscará tudo o que trabalhou."
Diante o "caos" que trazia dentro de si, Buffon lembrou ainda dos motivos que o levaram a cometer erros na juventude. "Claro, você acha que está mostrando a seus colegas de equipe que é forte e livre, mas, na realidade, essa é uma máscara que você usa."
Depressão
Pouco tempo depois, Buffon disse ter conhecido coisas "intoxicantes" e "muito perigosas": dinheiro, fama e o emprego dos sonhos.
"Agora, você certamente está pensando: 'o que poderia ser perigoso nisso?'", escreveu. "Bem, isso é um paradoxo."
"Por um lado, é verdade que um goleiro precisa de confiança. Ele precisa ser destemido. Se você der a um técnico a escolha entre o goleiro mais técnico do mundo e o mais destemido do mundo, garanto que ele sempre escolherá o idiota destemido", afirmou.
"Por outro lado, uma pessoa que não tem medo pode facilmente esquecer que tem uma mente. Se você vive sua vida de maneira niilista, pensando apenas em futebol, sua alma começará a murchar. Eventualmente, você ficará tão deprimido que não vai querer nem se levantar da cama."
O trecho faz referência ao diagnóstico de depressão que Buffon recebeu durante a temporada 2003/2004. O goleiro vinha da derrota na final da Liga dos Campeões 2002/2003, quando o Milan bateu a Juventus nos pênaltis, e sofria com a irregularidade de sua equipe no segundo semestre de 2003. Posteriormente, confirmou à imprensa italiana que chegou a visitar um psicólogo com frequência durante o período.
"Você pode rir, se quiser, mas isso vai acontecer com você. Isso acontecerá no auge de sua carreira, quando você tiver tudo o que um homem poderia desejar na vida. Você terá 26 anos. O goleiro da Juventus e da seleção italiana. Você terá dinheiro e respeito. As pessoas até chamam você de Super-Homem", lembrou.
"Mas você não é um super-herói. Você é apenas um homem como qualquer outra pessoa. E a verdade é que a pressão dessa profissão pode transformá-lo em um robô. Sua rotina pode se tornar uma prisão. Você vai para o treinamento. Chega em casa e assiste TV. Vai dormir. Faz o mesmo no dia seguinte. Ganha. Perde. Repete e repete."
"Uma manhã, quando você sai da cama e vai treinar, suas pernas começam a tremer incontrolavelmente. Você ficará tão fraco que não poderá dirigir seu carro. Inicialmente, você pensará que é apenas cansaço ou um vírus. Mas então vai piorar. Tudo que você quer fazer é dormir. No treinamento, cada defesa será um esforço titânico. Durante sete meses, você vai sofrer para encontrar alegria na vida."
Ídolo camaronês inspirou carreira no gol
Como seria possível enfrentar tantos problemas no auge da carreira? Neste trecho do texto, Buffon explica a sua versão mais jovem e lembra tudo o que fez amar o futebol - incluindo o primeiro ídolo do italiano, Thomas N'Kono, goleiro que defendeu a seleção de Camarões nas Copas do Mundo de 1982, 1990 e 1994.
"Você tinha 12 anos, sim. A Copa do Mundo de 1990 foi na Itália, sim. A primeira partida foi Argentina x Camarões no San Siro, sim. Mas onde você estava durante a primeira partida? Feche seus olhos. Você estava na sua sala, sozinho. Por que seus amigos não estavam lá, como sempre? Você não consegue se lembrar. Sua avó estava na cozinha, fazendo o almoço. E estava tão quente naquele dia que ela fechou todas as janelas para deixar a sala mais fresca. Estava completamente escuro, exceto pelo brilho amarelo da televisão."
"O que você vê? Você vê esse nome estranho: Camarões. Você não sabe onde fica Camarões. Você nem sabia que esse lugar existia antes deste momento. Claro, você conhece Argentina e Maradona, mas há algo de mágico nos jogadores dos Camarões. Faz muito calor sob o sol do verão, mas o goleiro está de calça e camiseta de manga longa. Calças compridas pretas. Camisa verde comprida com gola rosa. O jeito que ele se move, o jeito que ele está alto, o bigode fantástico."
"Ele cativa seu coração de uma maneira inexplicável. Ele é o cara mais legal que você já viu."
Naquele Argentina 0 x 1 Camarões, disputado em 8 de junho de 1990 e válido pela primeira rodada do Grupo B da Copa do Mundo, Buffon percebeu: queria ser goleiro. Mais do que isso: queria ser como Thomas N'Kono.
"Há um escanteio para a Argentina, e Thomas corre para a multidão na área e soca a bola 30 metros para ar. É neste momento que você percebe o que você quer fazer da sua vida. Você não quer ser simplesmente um goleiro - você quer ser esse tipo de goleiro. Você quer ser selvagem, corajoso, livre", lembrou o experiente goleiro da Juventus.
"Minuto a minuto, assistindo a esta partida, você se torna quem é. Sua vida está sendo escrita. Camarões marca, e você fica tão nervoso para que eles segurem o resultado que você não resiste fisicamente. Você pula do sofá. Você passa a segunda metade inteira andando em volta da TV. Quando Camarões tem um segundo jogador expulso, você nem consegue ouvir", acrescenta.
"Nos cinco minutos finais, você se agacha atrás da televisão com o som desligado. Você espia de vez em quando para ver o que está acontecendo, depois se recolhe de novo. Finalmente, você espia e os jogadores dos Camarões estão comemorando. Você corre direto para a rua. Duas outras crianças do seu bairro fazem a mesma coisa. Todo mundo está gritando: 'Você viu Camarões? Você viu Camarões?'"
"Nesse dia, uma chama nasce dentro de você. Camarões é um lugar que existe. Thomas N'Kono é um homem que existe. Você mostrará ao mundo que Buffon existe", conta o goleiro. "É por isso que você se tornou um jogador de futebol. Não por dinheiro ou fama. Por causa da arte e do estilo desse homem, Thomas N'Kono. Por causa de sua alma."
Naquele jogo, os camaroneses venceram graças a um gol de François Oman-Biyik aos 22 minutos do segundo tempo. André Kana-Biyik e Benjamin Massing foram expulsos, respectivamente, aos 16 e aos 43 minutos da etapa final. Os camaroneses terminaram a primeira fase na liderança do grupo, caindo nas quartas de final com uma derrota por 3 a 2 para a Inglaterra.
A arte de Chagall como salvação
Lembrando experiências do passado a seu eu mais jovem, Buffon diz que dinheiro e fama não devem ser seus objetivos na carreira. A prioridade, segundo ele, é cuidar de sua alma.
"Se eu pudesse lhe dar um conselho, seria para ser muito mais curioso sobre o mundo ao seu redor quando você ainda é jovem. Você poupará a si mesmo, e especialmente a sua família, de muita dor de cabeça", disse. "Você precisa ser corajoso para ser um goleiro, é verdade. Mas ser corajoso não é ser ignorante, Gigi."
Foi durante os cuidados com sua depressão que Buffon descobriu o mundo fora do futebol. Assim, descobriu a arte, graças às pinturas do franco-russo Marc Chagall.
"Nas profundezas da sua depressão, algo estranho e bonito acontecerá. Um dia, você decidirá interromper sua rotina e ir a um restaurante diferente em Turim no café da manhã. Então, você seguirá uma nova rota pela cidade e passará por um museu de arte."
"O cartaz do lado de fora diz 'Chagall'. Você já ouviu esse nome antes. Mas você não conhece arte. Você tem coisas a fazer. Você deve estar a caminho. Você é Buffon."
"Mas quem é Buffon? Quem é você realmente? Você sabe?"
"Esta é a parte mais importante desta carta. Você tem que entrar naquele museu, naquele dia específico. Será a decisão mais importante da sua vida. Se você não entrar nesse museu e continuar sua vida como jogador de futebol, como Super-homem, continuará a trancar todos os seus sentimentos no porão e sua alma se deteriorará."
"Mas se você entrar, verá centenas de pinturas de Chagall. A maioria deles não fará nada para mexer com você. Alguns bons, outros interessantes, outros que nada dizem para você. Mas então você verá uma pintura específica que o atingirá como um raio."
A imagem em questão era a pintura A caminhada, descrita por ele como "uma imagem quase infantil". "Um homem e uma mulher estão em um parque, fazendo um piquenique, mas tudo é mágico. A mulher está voando para o céu, como um anjo, e o homem está de pé no chão, segurando a mão dela, sorrindo."
"É como o sonho de uma criança. Esta imagem transmitirá algo de outro mundo. Isso lhe dará a sensação de uma criança. O sentimento de felicidade na simplicidade."
"A sensação de Thomas N'Kono socando a bola a 30 metros. A sensação de sua avó chamando você da cozinha. A sensação de se sentar atrás da televisão no escuro, rezando."
"À medida que envelhecemos, podemos facilmente esquecer esses sentimentos. Você deve voltar ao museu no dia seguinte. É essencial."
"A mulher na bilheteria olhará para você de uma maneira engraçada. Ela diz: 'Você não chegou aqui ontem?'. Não importa. Volte para dentro. Esta arte será a melhor cura para você. Quando você abre sua mente, o peso interior que você sente será elevado, como a mulher sendo levantada no ar na pintura de Chagall."
"Há uma incrível ironia neste momento. Às vezes acho que a vida precisa ser escrita para nós. Tantas coisas inexplicáveis e bonitas que acontecerão com você que parecem estar conectadas. Este é um deles."
Frase fascista
No fim da carta, Buffon ainda lembrou outro momento que protagonizou na juventude e do qual não se mostra orgulhoso: o lema fascista que usou, sem querer, para motivar os colegas de Parma.
"Quando você é um jovem jogador do Parma, fará algo por ignorância que o marcará. Antes de uma grande partida, você fará um grande gesto para mostrar a seus colegas e fãs que você é um líder, que é corajoso, que é um grande personagem."
"Então, você escreverá uma mensagem em sua camisa que uma vez viu esculpida em uma mesa quando estava na escola."
"Você escreverá: 'Morte aos covardes',"
"Você acha que é apenas um grito motivacional."
"Você não sabe que é um slogan dos fascistas de extrema direita."
"Este é um dos erros que causarão muita dor à sua família. Mas esses erros são importantes, porque lembram que você é humano. Eles vão lembrá-lo, repetidas vezes, de que você não sabe nada, meu amigo. Isso é bom, porque o futebol fará um excelente trabalho ao tentar convencê-lo de que você é especial. Mas lembre-se de que você não é diferente do garçom ou do eletricista, dos quais você será amigo por toda a vida."
"É isso que o tirará da depressão. Não lembrando que você é especial, mas lembrando que você é igual a todos os outros. Você não pode compreender isso agora, aos 17 anos, mas prometo que a verdadeira coragem será mostrar fraqueza e não se envergonhando."
"Você merece o dom da vida, Gigi. Assim como todo mundo faz. Lembre-se disso."
"As coisas estão conectadas de maneiras que você é jovem e ingênuo para ver agora. Meu único arrependimento é que você não abriu sua mente para o mundo antes. Talvez seja apenas quem você é. Aos 41 anos, você ainda sentirá essa chama por dentro. Você ainda não ficará satisfeito, sinto dizer. Nem mesmo segurar a taça da Copa do Mundo (de 2006) em seus braços vai acalmar esse sentimento. Até que você tenha uma temporada em que não define metas, não ficará satisfeito."
Por fim, Gianluigi Buffon se lembra de uma visita que fez ao tio em Údine, ainda na infância, aos quatro anos. Foi a primeira vez que o garoto viu neve na vida. Animado, correu para o frio e acabou ficando doente - e não se arrependeu.
"Você acordou e olhou pela janela e viu um sonho. Todo o país ficou branco."
"Você correu do lado de fora de pijama e nem sabia o que era neve. Mas não havia hesitação. Você olhou para o banco de neve branco e o que você fez? Você já pensou? Você se perguntou? Você correu para dentro para o seu casaco?"
"Não, você pulou direto. Sem medo."
"Sua avó estava gritando: "Gianluigi! Não! Não! Não!"
"Você estava encharcado, sorrindo."
"Você acabou com febre por uma semana inteira."
"Mas você não deu a mínima."
"Sem hesitação. Diretamente na neve."
"Este é quem você é. Você é Buffon."
"Você mostrará ao mundo que você existe."
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