Símbolo contra racismo, 'resposta histórica' é tratada como troféu no Vasco
Resumo da notícia
- Em 1924, a associação criada para organizar o Carioca colocou como condição para o Vasco participar ter de excluir 12 jogadores de seu elenco
- Um dos critérios para a exclusão baseou-se no analfabetismo e nas condições e natureza das profissões dos jogadores vascaínos
- "Curiosamente", os 12 atletas vascaínos eram negros ou brancos de origem humilde
- Presidente do Vasco na época, José Augusto Prestes informou em ofício que estava desistindo de participar por não concordar com as determinações
- Carta se tornaria um marco contra a discriminação racial e social no futebol brasileiro e seria conhecida anos depois como "resposta histórica"
- Português, Prestes fundou a 1ª fábrica de gelo do Brasil e a 1ª usina siderúrgica da América Latina. Vasco perdeu contato com seus parentes
Entre os itens ligados ao esporte nacional, um em especial traduz com mais síntese a luta contra a discriminação racial e social no Brasil. Datada em 7 de abril de 1924, a carta conhecida como "resposta histórica" - elaborada pelo ex-presidente do Vasco, José Augusto Prestes - é vista como um marco para negros e pessoas de classes menos favorecidas no futebol brasileiro e é tratada pelo clube como um verdadeiro troféu. Para muitos, inclusive, com uma importância maior que qualquer conquista da centenária história cruzmaltina.
Na época o Vasco, que havia sido campeão carioca de 1923, foi condicionado a participar da nova associação de futebol (AMEA) - fundada por clubes como Botafogo, Flamengo, Fluminense, América e Bangu - somente se excluísse de seu elenco 12 jogadores. O argumento era o de se ter maior controle sobre "a moral no esporte" e de se defender um futebol que fosse puramente amador.
Um dos critérios para a exclusão baseou-se no analfabetismo e nas condições e natureza das profissões dos jogadores vascaínos. "Curiosamente", os 12 atletas eram negros ou brancos de origem humilde.
Foi então que José Augusto Prestes informou em ofício que o Vasco estava desistindo de participar da associação por não concordar com as determinações, fazendo com que o Cruzmaltino disputasse uma liga alternativa, ato que seria considerado histórico anos depois.
"Quando me perguntam quais são os principais troféus do Vasco, eu digo que são dois: o primeiro é a Resposta Histórica e o outro é o próprio estádio Vasco da Gama, popularmente conhecido como São Januário, pois ele é um desdobramento da carta. Um representou a determinação dos vascaínos em enfrentar os entraves elitistas. E se aceitássemos, teríamos sucumbido. E o outro, considero o segundo grande bullying contra o Vasco, com o fato de que não tínhamos estádio. E com sangue, suor e lágrimas, construímos São Januário", disse João Ernesto, vice-presidente de Relações Especializadas do Vasco, que ressalta:
"A mensagem que a Resposta Histórica passa é a de que foi a segunda Lei Áurea no Brasil".
Tratada como ouro em São Januário
Passados 95 anos do ato, a carta é tratada como ouro em São Januário. Atualmente, o clube conta com um Centro de Memória e nele consta o que podemos chamar de modelo original do documento. Ele fica guardado num arquivo técnico de acesso bastante restrito, onde somente pessoas autorizadas podem manuseá-lo.
"Naquela época, quando se batia um ofício, botava-se um papel na máquina de escrever e um papel carbono por trás, para que na hora que batesse, as teclas impactassem na folha, passassem no carbono e impactassem em outra folha. O que temos é esta segunda folha. A original mesmo foi para a associação", detalhou João Ernesto, que também é um dos responsáveis por cuidar do Centro de Memória.
Porém, o torcedor ou o visitante que quiserem ver a carta de perto, há uma réplica dela no salão de troféus do clube, em São Januário. No entanto, existe a expectativa de que o modelo original fique exposto num futuro museu vascaíno, que já está projetado há tempos, mas que ainda não saiu do papel.
"É uma cópia estilizada que nós fizemos para mostrar aos torcedores. O Centro de Memória não é um espaço de visitação. O museu será", disse Ernesto.
Quem foi José Augusto Prestes?
Mas afinal, quem foi José Augusto Prestes, o ex-presidente vascaíno que escreveu o documento que se tornaria histórico e emblemático no Brasil?
Nascido em Portugal, Prestes tinha uma família abastada e foi mandado para os Estados Unidos ainda jovem, onde se formou em engenharia mecânica. De volta ao seu país, participou em 1891 do primeiro golpe para tentar implementar o republicanismo em terras lusitanas.
O fracasso do movimento o levou ao Brasil, onde teria muito sucesso como empresário, quando fundou a primeira fábrica de gelo do país, em endereço próximo à primeira sede do Vasco.
Sua representatividade no Brasil foi aumentando gradativamente, tornando-se posteriormente superintendente da Companhia Docas do Rio de Janeiro e responsável pela primeira indústria siderúrgica da América Latina, a Usina Santa Luzia.
Na vida política, sofreu uma tentativa de atentado a bomba no Brasil, em 1912, e chegou a ser preso e libertado em Portugal, em 1917. Em sua terra natal, foi condecorado com a Ordem Militar de Cristo no grau de Grande - Oficial, título honorífico que é destinado somente à pessoas de altíssima relevância por serviços prestados.
Sua passagem pelo Vasco foi curta, porém marcante e histórica. Ele se tornou presidente em 1923, confeccionando a famosa carta no ano seguinte. Pouco depois, ainda em 1924, o português renunciou ao cargo por conta de sua atribulada vida profissional.
José Augusto Prestes faleceu em julho de 1952.
Fonte: Blog do Bacchi
Vasco perdeu contato com parentes
O Vasco, atualmente, não possui contato com parentes de José Augusto Prestes. O último aconteceu em meados de 2013, com um familiar distante que, na ocasião, morava em Petrópolis, Região Serrana do Rio de Janeiro.
"Eu tinha um contato com um sobrinho-neto ou sobrinho-bisneto dele. Isso lá por 2013, mas perdi esse contato. Ele morava em Petrópolis", informou o vice de Relações Especializadas do Vasco.
Vasco adota "mês da Consciência Negra"
Em parceria com o Observatório da Discriminação Racial no Futebol, o Vasco adotou novembro como "mês da Consciência Negra" e tem feito diversas ações. A equipe tem atuado com o símbolo da organização na camisa e dado aos seus adversários em campo uma flâmula com a imagem do "punho cruzado", símbolo da resistência ao racismo, com as palavras "respeito" e "igualdade". O item, aliás, estará à venda para os torcedores a partir do jogo contra o Cruzeiro, dia 2 de dezembro, em São Januário.
Hoje (20), nas redes sociais, o clube também tem feito, ao longo do dia, postagens com estatísticas sobre a população negra no Brasil. Os números são fornecidos pelo Observatório.
A íntegra da "Resposta Histórica"
"Rio de Janeiro, 7 de Abril de 1924.
Officio No 261
Exmo. Snr. Dr. Arnaldo Guinle,
M. D. Presidente da Associação Metropolitana de Esportes Athleticos.
As resoluções divulgadas hoje pela Imprensa, tomadas em reunião de hontem pelos altos poderes da Associação a que V. Exa. tão dignamente preside, collocam o Club de Regatas Vasco da Gama numa tal situação de inferioridade, que absolutamente não pode ser justificada, nem pelas defficiencias do nosso campo, nem pela simplicidade da nossa séde, nem pela condição modesta de grande numero dos nossos associados.
Os previlegios concedidos aos cinco clubs fundadores da A.M.E.A., e a forma porque será exercido o direito de discussão a voto, e feitas as futuras classificações, obrigam-nos a lavrar o nosso protesto contra as citadas resoluções.
Quanto á condição de eliminarmos doze dos nossos jogadores das nossas equipes, resolveu por unanimidade a Directoria do C.R. Vasco da Gama não a dever acceitar, por não se conformar com o processo porque foi feita a investigação das posições sociaes desses nossos consocios, investigação levada a um tribunal onde não tiveram nem representação nem defesa.
Estamos certos que V. Exa. será o primeiro a reconhecer que seria um acto pouco digno da nossa parte, sacrificar ao desejo de fazer parte da A.M.E.A., alguns dos que luctaram para que tivessemos entre outras victorias, a do Campeonato de Foot-Ball da Cidade do Rio de Janeiro de 1923.
São esses doze jogadores, jovens, quasi todos brasileiros, no começo de sua carreira, e o acto publico que os pode macular, nunca será praticado com a solidariedade dos que dirigem a casa que os acolheu, nem sob o pavilhão que elles com tanta galhardia cobriram de glorias.
Nestes termos, sentimos ter que comunicar a V. Exa. que desistimos de fazer parte da A.M.E.A.
Queira V. Exa. acceitar os protestos da maior consideração estima de quem tem a honra de subscrever
De V. Exa. Atto Vnr., Obrigado.
(a) José Augusto Prestes
Presidente"
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